por Mariana Albanese
No dia 13 dezembro de 2012, os moradores do Vidigal acordaram com a notícia de que uma retroescavadeira iria demolir sua única área de lazer para dar lugar à nova sede da UPP Vidigal. Sem avisar a Associação dos Moradores sobre a subida, muito menos apresentar um mandado, eles foram derrubar tudo. Fui lá com meu celular, acompanhar a movimentação para o site Vidiga! e o perfil Vidiga Vidigal. Acabei agredida, roubada, presa e agora respondo por lesão corporal e desacato à autoridade.
Para você que nunca foi preso e nem quer ser, um roteiro de quem chegou bem perto do xadrez.

A PRISÃO
A emoção de ser presa, na minha vida, só se comparou a de ver, do barco, a bandeira da Ilha de Caras ao vento. Sabe a sensação de que está acabando a lista de coisas surreais que precisam acontecer na sua vida? Então.
E aí foi. “Você está presa!”: cinco policiais me imobilizaram, enquanto eu gritava “pode bater que estão filmando!”. Aquilo era tão louco, que só me restava rir: “Júlia, tira foto da minha algema! Eu nunca fui presa e quero registrar esse momento!”. Dentro do camburão, uma Mariana sorridente posou para fotos.
Não havia motivos para eu me render. Se eu estava certa, se levei um tapa, se destruíram meu celular e eu ainda fui presa, por que chorar? O jeito era esperar uma das CINCO CÂMERAS que registraram a UPP do Vidigal agredindo, e depois prendendo uma jornalista, fazerem seu papel.
Primeiro, foi o olhar matador. Poucos segundos antes de um tapa levar meu celular ao chão e um chute o esquartejar, eu sabia que seria agredida. O cabo Péricles, que tinha ordens do Capitão Fábio Pereira para “prender quem tentasse impedir” a demolição, estava lá para fazer o trabalho sujo.
Eu filmava a confusão de longe e havia gritado, não para ele, mas para seus colegas cujo lema é “Servir e Proteger” (os interesses do Governo): “Vocês vão acabar com a UPP do Vidigal!”. Mas foi ele, que nem estava na minha linha de filmagem, quem me agrediu. E não pensei duas vezes em partir para cima dele, mesmo sabendo que perderia a briga. Na raiva, sua força se multiplica por mil. E se eu soubesse lutar boxe, o estrago teria sido feio. Ah, meu celular. Ninguém toca nele sem que eu vire um bicho!
Na confusão, minha bolsa caiu. Implorei para irem buscar. Mas nada. Fui para a delegacia sem documentos e telefone, e assim fiquei por dois dias, o que me impediu de fazer exame de corpo de delito.
DAS ALGEMAS
Não sei se você já foi algemado, pela polícia ou fetiche, mas algemas têm um segredo: se você ficar quietinho, elas não te machucam. Basta não girar os pulsos.
Mas a alça de meu macaquinho abriu e eu estava quase nua dentro da viatura. Então me esforçava para, com as mãos atadas na parte de trás do corpo, dar um jeito de ficar minimamente digna.
Quando a viatura parou na porta da 15ª DP, desci e pedi para o policial, que dirigia o carro, levantar minha roupa. Ele ficou sem jeito, mas fez isso. A situação foi um tanto constrangedora, a ponto do Péricles mandar o cara soltar minhas algemas – ou talvez porque ele pensou que eu, este elemento tão periculoso, não ousaria fugir da porta da delegacia.
DAS VANTAGENS E DESVANTAGENS DE ESTAR NUM CAMBURÃO
Na verdade, só vi uma coisa boa: andar na contramão e passar no sinal vermelho sem ser multada. Eles ligaram a sirene, enfiaram o pé no acelerador e rumaram para a Gávea como se eu tivesse acabado de decepar três cabeças.
Já a pior parte, é aquela área isolada no fundo do camburão. Foi o único momento em que eu realmente senti medo. Lá não há nenhuma saída de ar. Com o calor acumulado em horas no sol, estava o mais próximo que poderia chegar do inferno. Algemada, eu gritava e batia no vidro, implorando para me tirarem de lá. Não aguentaria mais cinco minutos sem desmaiar, sem qualquer exagero. Comecei a ficar tonta, faltava ar e eles quase não me ouviam, porque o vidro blindado dá uma proteção acústica. Mas aí o policial disse que me passaria para frente, se eu prometesse ficar quieta. Prometi, obviamente, e também não via exatamente uma forma de ficar muito agitada estando com as mãos algemadas para trás do corpo. (Acho que eles não te algemam pra frente por causa dos filmes americanos. Lembrei que você pode tipo enforcar alguém com a corrente. Obrigada, Hollywood).
DOS FÃS NA RUA
Tá aí uma coisa que nunca tinha parado para pensar: na forma como as pessoas te olham quando você está algemado dentro de um carro da polícia.
Claro que eu, com esse rostinho de moça bem criada, causava mais espanto que o comum. Teria ela assassinado os pais?
No canal do Leblon, um vendedor de biscoito fez um sinal: “força!”. Na Gávea, realmente me senti um ET. As pessoas me olhavam com uma curiosidade de circo das aberrações.
Dentro do Vidigal, quando parávamos no trânsito, às vezes eu dizia pra alguém: “fui presa…”. Do outro lado, a pessoa assentia com pesar.
Mas nunca vou esquecer de um menininho, de uns quatro anos. O policial “gente boa” (depois ele não ficou tão legal, porque depôs contra mim) parou pra falar com ele. Me espantava a cara de admiração da criança. A primeira geração do Vidigal que não chora ao ver uma farda. “Só vou ali fazer uma ocorrência e já volto”, disse pro menino, que então me viu no banco de trás. A expressão dele mudou. Ele perguntou com os olhos: “O que é isso?”. Pensei em dizer. Mas não achei justo detonar a imagem da polícia para o menino, que ali não entenderia que nem todos são do mal.
A SALA DE ESTAR DA DELEGACIA
Quando entramos na delegacia, o Péricles parou no carinha que faz as primeiras anotações. Anunciou o crime: “Desacato à autoridade”. O cara anotou. Depois: “E agressão”. O rapazinho olhou para a cara dele, olhou para a minha e perguntou: “Agressão da parte de quem???”.
Fiquei sentada algumas horas por lá. Chegaram meus anjos, Júlia Giglio e Raff Giglio.
Mais tarde, a Neusa Lima foi lá, prestar solidariedade. E, por fim, chegou o Sebastião Aleluia, o Doquinha, vice-presidente da Associação dos Moradores da Vila do Vidigal.
Minha mãe, Ana Maria, lá de São Paulo, ligava para toda a imprensa do Rio de Janeiro, para a Comissão de Direitos Humanos da Alerj (que foi impecável) e ligaria para a Dilma, se tivesse o telefone dela.
Ao mesmo tempo, os telefones da delegacia não paravam. “Vidigal. Vidigal. Vidigal”. Eles já estavam ficando meio chateados, principalmente quando a Record, o SBT e a Rede TV! chegaram lá.
O inspetor foi bem esperto. Primeiro, ouviu a gente informalmente. Depois, falou com os policiais. O Péricles tinha ido ao Miguel Couto fazer corpo de delito (imagino o resultado: “três botões arrancados”). Na volta, depôs por um tempão, criando a seguinte obra de ficção: “Mariana Albanese, no calor das discussões, lhe empurrou e deu uma pancada no olho esquerdo. Teve que se defender da agressão, empurrando e imobilizando a agressora. O telefone celular dela caiu no chão”.
QUER ROMANCE? LEIA UM LIVRO!
Quando chegou minha vez de depor, era só porrada. “Você incitou os moradores a se rebelarem?”. “Não perguntei o que aconteceu. Quero saber o que você fez”. Perguntei se podia registrar uma queixa contra o policial, ele disse que não, que era “tudo junto”.
Depois, pedi para ele incluir que permaneci algemada, mesmo sem oferecer resistência. Ele não queria colocar, porque aquilo não era um “romance pra você ficar contando história”. Eu disse que se ele não colocasse, eu não assinaria. Ele disse que se eu não assinasse, ele me prenderia. Que eu estava “desacatando” ele. Aí, para me provocar, escreveu: “E diz que foi algemada”.
Como eu já estava sem paciência, soltei: “Você tá me tirando, né?”. Ele me deu voz de prisão. Pra mim, ficou claro: se tirarem a prisão por desacato, metade dos policiais vai pedir o desligamento. É um orgulho que vem de dentro. Ele se levanta, levanta a voz e fala cantando, marcando cada sílaba: “Vo-cê es-tá pré-sa por de-as-ca-to à –au-to-ri-da-de”.
Achei legal aquilo e usando meu direito de cidadã, avisei que poderia da voz de prisão a ele também. Por desacato ao cidadão. Aí, antes que ele soltasse mais fumaça pelas ventas, o telefone tocou. Ele foi atender. E voltou um anjo.
Colocou que permaneci algemada. Depois, um investigador me disse que eu não ficaria presa se me negasse a assinar. Mas aí o texto estava certo e assinei. Fui liberada, dei entrevistas e decidi que voltaria ao Vidigal, mesmo com medo.
SEM LENÇO E SEM DOCUMENTO
Minha bolsa não apareceu por dois dias. Não tinha a chave de casa, nem documentos, nem dinheiro. Dormi na casa de uma amiga e usei sua roupa. Quando me devolveram a bolsa, descobri que estava sem o outro celular e R$ 50.
Agredida, roubada e presa duas vezes no mesmo dia, fui enquadrada no artigo 129 do Código Penal: Lesão Corporal Provocada por Socos, Tapas e Pontapés. Além de Desacato à Autoridade.
COMO DIZER OBRIGADA CENTENAS DE VEZES, SEM ME REPETIR
Faz cinco dias que isso aconteceu, e até agora não consegui responder a todos os amigos e anônimos que me escreveram. É tanta gente mandando “força”, “estou contigo” e até mesmo se desculpando por ser “de classe-média e acomodado”, que mudei minha forma de ver o mundo.
Eu achava que tinha mais gente ruim do que boa. Hoje, penso que as boas são maioria e fiquei com mais vontade de viver e lutar.
No Vidigal, 98% das pessoas com mais de 5 anos viram o vídeo da agressão. Chegam a gritar: “Filho, vem ver quem tá aqui! É a menina que apanhou”.
Depois de tudo, só me resta uma dúvida: coloco no meu portifólio o vídeo em que apareço na Globo, dando uma joelhada num policial?