
Na guerra do Vietnã, os soldados americanos treinavam nos quartéis cantando canções macabras, que o mundo jamais esqueceu: “Vou para o Vietnã/matar vietcong”!
No quartel do forte do Barbalho, em Salvador, na Bahia, em 64, o capitão José Hermes de Figueiredo Ávila, nariz de gavião e sorriso de gilete, ficava na janela de sua sala de comando, no 2º andar, vendo, lá embaixo, os sargentos Nova, Santana e Jacques dirigirem os exercícios diários de treinamento de centenas de soldados da Companhia de Guarda do Exército.
O soldado Pelé, negro, alto, forte, voz de trovão, puxava a marcha e o coro coletivo, todos batendo forte os pés no cimento e gritando, ritmados: “Um, dois! Um, dois! Soldado não pensa! Soldado não pensa”!
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O CHINÊS E A ANISTIA
Um pacato comerciante chinês de lavanderia, naturalizado brasileiro, porque estava embarcando no aeroporto do Galeão para os Estados Unidos, onde a família mora e os filhos estudam, levando US$ 30 mil dólares (se fossem US$ 30 milhões, o Banco Central ensinava como mandar escondido), foi preso, levado para a cadeia, torturado e friamente assassinado.
Também uma delegação da Anistia Internacional fez um levantamento sobre torturas nas prisões brasileiras e ficou escandalizada com a quantidade, a violência e o hábito, continuado, permanente, sempre impune, da tortura aqui.
Já faz tanto tempo que a ditadura acabou e, com ela, a generalização da tortura, criada, mantida e inutilmente escondida pelos altos comandos. Tempo houve para a tortura acabar. Não acabou porque ela saiu dos quartéis militares, mas continua entranhada na secular formação de muitas polícias.
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NO PARQUE GUINLE
Há algun anos, os jornalistas Jan Theophilo e Vera Araújo, do “Globo”, fizeram denúncia aparentemente hilária, mas de terrível gravidade. Flagraram soldados do Bope (Batalhão de Operações Especiais) da PM do Rio fazendo seus exercícios coletivos matinais pelas ruas grã-finas do Parque Guinle, bem em frente ao venerando Palácio das Laranjeiras, e entoando felizes, eufóricos e heróicos, como se fossem cândidas canções de amor:
“O interrogatório é muito fácil de fazer, pega o favelado e dá porrada até doer./ O interrogatório é muito fácil de acabar, pega o bandido e dá porrada até matar”.
Um inacreditável hino de amor, saudando as luminosas manhãs do Parque Guinle.
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SOLDADOS E FAVELADOS
Se fosse apenas esse verso, podia-se imaginar que é coisa de algum tarado infiltrado na tropa. Mas continuavam, todos eles, uníssonos, marchando e cantando a letra mórbida, longa, rimada, sem um erro só:
– “Esse sangue é muito bom, já provei, não tem perigo. É melhor do que café. É o sangue do inimigo”.
E mais: – “Bandido favelado não se varre com vassoura./ Se varre com granada, com fuzil, metralhadora”.
É uma sociologia policial muito destrambelhada, muito transviada. Quantos daqueles soldados, que se presume corretos e distantes do crime e da droga, não vieram das favelas ou ainda moram em favelas? Fizeram a cabeça deles para matarem a gente deles?
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JABUTI E PM
Como ensinou Vitorino Freire, jabuti não sobe em árvore; se está na árvore, alguém o pôs lá. Esses soldados não aprenderam isso em casa. Alguém lhes ensinou nos quartéis, para onde foram aprender a servir à lei e à ordem.
Claro que isso não acontece apenas no Rio. A violência policial, civil e militar, diante da qual a Anistia Internacional fica tão constrangida, é um problema nacional, de norte a sul. E quanto mais atrasados os estados, mais facilmente cresce a violência dentro dos quartéis e delegacias.
Não basta a PM ou a Polícia Civil apurarem e punirem. É preciso, sobretudo, que as Academias de Polícia Militar e os cursos de preparação da Polícia Civil façam do combate à violência uma preocupação permanente, matéria prioritária, no ensino e no dia-a-dia. E nas manhãs do Parque Guinle.
Quanto mais violenta é a polícia, mais o bandido tem cobertura social.
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Eis a letra completa da música que teve versos citados por Sebastião Nery:
SANGUE BOM
Se você está com sede
E não tem o que beber
Preste muita atenção
No que o (Pirata) vai dizer
Pegue sua baioneta
E depois é só esperar
Ao Passar o inimigo
Baioneta em sua goela
Vai descer um caldo quente
Parecido com melado
É o sangue do inimigo
Que está sendo derramado
Esse sangue é muito bom.
Eu já provei, não há perigo.
É melhor do que café.
É o sangue do inimigo
Outra música:
INTERROGATÓRIO
O interrogatório é muito bom de se fazer
A gente pega o animal e bate nele até dizer
Bate nele até dizer
Bate nele até falar
Se o animal não cooperar a gente bate até matar
Assassino não sou não mato pela profissão
Mais canções aqui . Inclusive Sangue Bom, p. 96.

