Eduardo Cunha provou do veneno que fez beber a Dilma

Os mistérios da justiça brasileira

Público/Portugal
Editorial

No dia em que a destituição de Dilma Rousseff estava a ser votada no Parlamento brasileiro, Glauber Braga, um deputado que foi contra o impeachment, disse o seguinte: “Você é um gangster, o que dá sustentação ao seu posto cheira a enxofre”. O destinatário desta afirmação era Eduardo Cunha, o presidente da Câmara de Deputados, um dos políticos mais odiados do Brasil. Mas Glauber não foi o único a manifestar o que lhe ia na alma sobre esta personagem tão controversa. Outros parlamentares, mesmo alguns dos que apoiaram a destituição de Dilma, lhe apontaram o dedo premonitório, vaticinando que ele seria o próximo a sair. E tinham razão. Nesta quinta-feira, um juiz do Supremo Tribunal Federal decidiu suspendê-lo do seu mandato de deputado e de presidente do Parlamento. O pedido de afastamento de Eduardo Cunha tinha sido feito há cinco meses pelo procurador-geral da República e estava desde então parado no Supremo Tribunal Federal. O poder do deputado, reforçado pelo bem-sucedido processo de impeachment, fazia com que muitos duvidassem da sua saída, mas as subtilezas da justiça (ou será da política?) brasileira acabaram por contribuir para este desfecho. E assim, o mesmo juiz que há cinco meses não dava andamento ao pedido do procurador fazendo aumentar as desconfianças de parcialidade e inacção sobre o Supremo, decidiu inesperadamente pelo afastamento de Cunha do Congresso. Para tal, não bastaram os fortíssimos argumentos do Ministério Público, segundo os quais Eduardo Cunha usava o seu cargo de deputado para “constranger, intimidar parlamentares, réus, colaboradores, advogados e agentes públicos com o objectivo de embaraçar e retardar investigações [da Operação Lava-Jato”]. Já o pedido de urgência para afastar Cunha, apresentado por um partido, foi mais eficaz para acordar o Supremo. Mistérios! O coveiro de Dilma provou do seu próprio veneno e fica agora sem a imunidade de que necessitava para fugir à justiça e isso é uma boa notícia. A má é que o seu substituto também está sob investigação judicial, por corrupção e lavagem de dinheiro.

 

 

Sobre a noite escura

por Miguel do Rosário

 

O golpe tem inspirado projeções bastante sinistras para o futuro próximo, em especial de aumento da taxa de coação estatal, diminuição das liberdades, aprofundamento do processo de criminalização das atividades políticas.

No entanto, essas coisas apenas serão uteis politicamente ao golpe se a mídia corporativa assumir uma hegemonia ainda maior da que já possui hoje, e puder controlar a narrativa de todos os fatos.

Neste primeiro de maio, novamente comunidades de brasileiros em todo o mundo protestaram contra o golpe. O clima de virada da opinião pública continua em processo, de maneira que o golpe terá que inventar uma quantidade maior de factoides, daqui para a frente, para manter a temperatura golpista elevada.

Exatamente para isso serve a Lava Jato, e a força-tarefa já entendeu qual o papel que agora lhe cabe.

No Senado, a comissão de impeachment ouviu hoje juristas em favor do golpe, e o que se viu novamente provocou grande constrangimento para quem assistiu. Os entrevistados praticamente admitiram que não há crime de responsabilidade no pedido de impeachment e, por isso, eles procuraram dar uma sustentação puramente política ao impeachment.

Tão grande é a vergonha que os golpistas disseminaram na redes sociais que a presidenta Dilma iria renunciar e provocar novas eleiões.

A informação não procede. A presidenta já demonstrou estar decidida: vai apostar na luta, em todos os campos, mesmo sabendo que, em várias frentes, as chances de vitória são praticamente nulas.

Para isso, para lutar, Dilma não pode renunciar, e sim se manter à frente de um processo crescente de sublevação popular contra o golpe e pela legalidade.

A noite escura que irá se abater sobre o país talvez dure longos anos, talvez seja rápida, mas ensejará a criação de novas estratégias para defender a liberdade e a democracia.

Os que resistirem e sobreviverem à temporada de perseguições políticas, asfixia econômica, assassinatos de reputação, que se seguirá à consumação do golpe, estarão, contudo, preparados para liderar o país de volta aos tempos do respeito à democracia e às garantias constitucionais, especial a maior garantia de todas: o respeito à soberania do voto popular.

Supremo Tribunal Federal deve barrar ou nulificar impeachment sem crime de responsabilidade

Por Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Paulo Roberto Iotti Vecchiatti

Em meio ao turbilhão em que se encontra o país em razão de protestos sociais contra e a favor do Governo Federal, a questão jurídica que envolve o processo de impeachment tem ficado em segundo plano. Contudo, uma questão simplesmente fundamental tem sido ignorada em todos os debates acerca do tema, que mais se transformaram em “guerra de opinião” entre duas torcidas organizadas, a favorável e a contrária à destituição da Presidente da República. Trata-se da diferença fundamental entre Presidencialismo e Parlamentarismo, que está na essência (na natureza jurídica) do instituto do impeachment.[1]

No Presidencialismo, as figuras de Chefe de Governo e Chefe de Estado encontram-se unificadas na mesma pessoa, enquanto no Parlamentarismo tais funções são exercidas por diferentes pessoas. O(A) Chefe de Governo parlamentarista é quem exerce as funções equivalentes ao(à) Presidente da República no presidencialismo no tocante às atribuições deste na condução da política e da Administração Pública. Aqui entra a diferença fundamental entre ditos regimes de governo, a saber, a forma em que pode ser destituído(a) o(a) Chefe de Governo.

No Parlamentarismo, temos o instituto do voto de desconfiança, pelo qual o(a) Primeiro(a) Ministro(a) pode ser derrubado(a) apenas pela perda de confiança do Parlamento. Ou seja, perdido o apoio da base aliada ou em razão de uma grave crise política, pode o Parlamento derrubar o(a) Chefe de Governo, para que outra pessoa exerça essa função (a forma de escolha varia de acordo com a legislação de cada país). E é importante assinalar: aprovada a desconfiança, não só cai o Primeiro Ministro, como o próprio Parlamento, para que novas eleições sejam realizadas. Já no Presidencialismo, temos o instituto do impeachment, que não é sinônimo de voto de desconfiança e isso por uma simples razão: exige-se que o(a) Presidente tenha cometido algum crime de responsabilidade para que ele(a) possa ser destituído(a) da Presidência da República – e porque neste caso se trata de um “crime” e não de mera questão política, o(a) Presidente é retirado de seu cargo e assume o Vice-presidente, além do que os membros do Parlamento permanecem com seus mandatos intocados.

Não é causa para impeachment eventual descontentamento popular sobre políticas econômicas, assim como não o é (não deve ser) eventual perda de maioria do Chefe do Executivo no Parlamento. Num sistema Parlamentarista, uma e outra causas bastariam para o voto de desconfiança, mas, no Presidencialismo, não é assim que estão postas as “regras do jogo”, sob pena do abuso das regras para se alcançar objetivos escusos, como mostram os ensinamentos de Klaus Günther quando diferencia discursos de fundamentação de discursos de aplicação de normas: é teoricamente legítimo que haja a denúncia e o processamento mas se não nos atentarmos para as particularidades do caso concreto corremos o risco de permitir que as reais pretensões se tornem invisíveis: disfarçar uma tentativa de destituição de um(a) Presidente através de um pedido de apuração de fato que não corresponde a crime de responsabilidade é uma forma contemporânea de golpe de Estado.

Crimes de responsabilidade estes previstos pela lei, de forma taxativa, de sorte a não caber interpretação extensiva ou analógica para justificar legalmente e constitucionalmente o impeachment fora das específicas hipóteses legalmente positivadas (conforme a doutrina de Marcelo Galuppo, para quem uma das hipóteses objeto de controle judicial do processo de impeachment é “A condenação com base em lei diversa da lei 1079/50”[2]). Isso significa que é inconstitucional a decretação de impeachment sem que se prove a ocorrência de crime de responsabilidade contra o(a) Presidente da República, razão pela qual o Supremo Tribunal Federal tem o dever constitucional, enquanto guardião da Constituição, de barrar ou declarar a nulidade de qualquer impeachment recebido pela Câmara ou decretado (em condenação) pelo Senado caso inexistente conduta hipoteticamente subsumível nas taxativas previsões legais que tipificam os crimes de responsabilidade.

Essa é, precisamente, a questão que é solenemente ignorada pela mídia e pela opinião pública em geral no tormentoso processo de impeachment apresentado contra a Presidente Dilma Rousseff: nenhuma conduta de Dilma Rousseff se enquadra nas taxativas hipóteses de crimes de responsabilidade da Lei do Impeachment (Lei n.º 1.079/50).

Aqui cabe um importante esclarecimento. Crimes de responsabilidade são, como o próprio nome diz, crimes. Em precedente citado na própria denúncia descabidamente acolhida pelo Presidente da Câmara dos Deputados para fins de processo de impeachment, o Supremo Tribunal Federal já afirmou que os crimes de responsabilidade constituem matéria penal e, por isso, são de competência legislativa exclusiva da União. Isso para declarar a inconstitucionalidade de lei estadual que havia previsto hipóteses de crime de responsabilidade – foi feita depois, inclusive, uma Súmula sobre isso daquele Tribunal, o enunciado n. 722 (embasado nas ADI 2592[3], 1901, 1879-MC[4], ADI-MC 2220 e ADI-MC 1628). Se isso é assim (e não há motivo para interpretar o termo crime de outra forma), então aplica-se aqui toda a teoria do crime e dogmática penal em geral, que, no que é relevante, tem como consequência que não há “crime por analogia”, donde não pode haver punição por “crime de responsabilidade” sem que a lei expressamente preveja a conduta objeto do processo de impeachment.

Tal é referendado, inclusive, pela própria Lei do Impeachment, cujo artigo 38 prevê a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal para suprir eventuais lacunas procedimentais daquela lei. Ora, não se invocaria o Código de Processo Penal se os crimes de responsabilidade não constituíssem matéria penal. Note-se, aliás, que na ADPF 378, que tratou sobre o rito do processo de impeachment, o STF negou o direito a uma defesa prévia antes do recebimento da denúncia afirmando que isso não é exigido à ampla defesa em um processo “penal” (cf. expresso já na ementa, em seu item 2).

Ressalte-se que tal entendimento foi expressamente afirmado pelo Ministro Roberto Barroso, em seu voto vencedor na ADPF 378 (p. 87 do voto), ao aduzir que “A indicação da tipicidade é pressuposto da autorização de processamento, na medida em que não haveria justa causa na tentativa de responsabilização do Presidente da República fora das hipóteses prévia e taxativamente estabelecidas. Se assim não fosse, o processamento e o julgamento teriam contornos exclusivamente políticos e, do ponto de vista prático, equivaleria à moção de desconfiança que, embora tenha sua relevância própria no seio parlamentarista, não se conforma com o modelo presidencialista, cujas possibilidades de impedimento reclamam a prática de crime de responsabilidade previsto em lei específica. Inobservada a limitação da possibilidade de responsabilização às hipóteses legais, todo o devido processo cairia por terra”. Ainda que se trate de obter dictum, já que o tema debatido naquela ação era o do rito do processo do impeachment em ação contra a “lei em tese”, trata-se de importante “precedente”. Por outro lado, o que fazemos aqui é simplesmente aplicar essa (notória) diferença ao caso concreto. Enquanto a ADPF 378 focou-se no aspecto formal (procedimental) do impeachment, neste artigo nos focamos em si aspecto de Direito Material (Substantivo), a saber, aquilo que pode ou não ser considerado causa de impeachment. E nossa conclusão, dado o caráter penal dos crimes de responsabilidade (cf. Súmula 722 do STF), que só podem ser os fatos taxativamente tipificados como tais pela Lei do Impeachment. Taxatividade que se sustenta ainda que em suposto caráter não-penal do impeachment (para quem disso discordar), ante o parágrafo único do art. 85 da CF/88 exigir que lei especial defina (taxativamente) os crimes de responsabilidade. Logo, o que se defende aqui é que o Supremo Tribunal Federal tem o dever constitucional de trancar a ação de impeachment, por atipicidade da conduta imputada (logo, por ausência de requisitos materiais para instauração de um processo de impeachment), caso ela (conduta) não se enquadre no rol taxativo de crimes de responsabilidade legalmente fixado (da mesma forma que a Justiça pode trancar uma ação penal, por atipicidade da conduta: seja pelo caráter penal dos crimes de responsabilidade, seja pelo seu caráter “taxativo não-penal”, para os que negarem aquele).Ou, caso tenha havido imposição pelo Senado de impeachment por fato atípico, defende-se aqui que o STF tem o dever constitucional de declarar a nulidade de impeachment decretado por fato materialmente atípico.

Mas, caso a natureza jurídica do regime presidencialista e do impeachment não convençam o(a) leitor(a), este(a) tem a obrigação de se convencer/conformar com a taxatividade das hipóteses legais de crimes de responsabilidade por outro fundamento, jurídico-constitucional. A saber, o art. 85, parágrafo único, da Constituição Federal, estabelece que os crimes de responsabilidade serão aqueles definidos em lei. Logo, evidentemente não é “autoaplicável” o citado dispositivo constitucional, tanto por sua essência (matéria criminal, que precisa ser especificada em tipos penais taxativos), quanto por sua literalidade (a Constituição remete à lei a definição dos crimes de responsabilidade).[5].

Enfim, tanto a jurisprudência do STF quanto a própria Lei do Impeachment e a própria Constituição deixam claro que os crimes de responsabilidade são crimes e, como tais, devem ser interpretados segundo a interpretação puramente literal (nunca ampliativa nem analógica), como as normas penais em geral. Como crimes, vale a máxima há tanto fixada sobre a aplicação da norma penal: não é possível a analogia “mala partem” e, claro, o princípio constitucional da presunção de inocência.[6]

Ainda que se admita que o procedimento contenha uma natureza também política, é preciso ter claro que ele é um procedimento jurídico e deve ser tratado com a seriedade necessária.

Analisemos, assim, o caso concreto do pedido de impeachment apresentado contra a Presidente Dilma Rousseff.

A denúncia acolhida pelo Presidente da Câmara dos Deputados (que a aceitou pura e simplesmente por ser opositor do Governo, o que é fato notório, amplamente noticiado pelo fato de que ele aguardou a posição de membros do Partido da Presidente se manifestarem em procedimento no Conselho de Ética, para, depois disso, se posicionar sobre o pedido de abertura de procedimento) simplesmente deturpa o significado da Lei do Impeachment para tentar enquadrar as condutas da Presidente da República numa de suas hipóteses, mas sem sucesso, pelo menos para quem leva o Direito e a taxatividade das hipóteses de impeachment a sério.

Primeiramente, tenta dizer que a Presidente teria se omitido em punir pessoas a ela subordinadas que teriam praticado atos de corrupção (etc.) e agido de modo incompatível com o seu cargo. Contudo, não há prova nenhuma de que a Presidente tinha conhecimento dos atos ilícitos em questão para que se pudesse afirmar que ela, deliberadamente (dolosamente) nada fez. Temos, aqui, mais uma vez, uma deturpação da “teoria do domínio do fato”. Não se condena criminalmente alguém sob o fundamento de que “não tinha como não saber” (sic). A condenação com base nessa teoria demanda que se prove que a pessoa (hierarquicamente superior) tinha conhecimento do cometimento de atos ilícitos e a capacidade de impedir a ocorrência dos ilícitos – ou seja, que ela tinha o “domínio do fato”, a capacidade de evitar a ocorrência do fato. Não existe responsabilidade penal objetiva: sem a existência de culpa (dolo ou culpa em sentido estrito – e esta só quando o tipo penal prevê a punição de condutas culposas), não há condenação penal, reiterando-se que crimes de responsabilidade são crimes e, como tais, sujeitam-se a tal circunstância da dogmática penal. Ao passo que as acusações relativas a ter supostamente a Presidente da República agido de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo, se pauta em puras e arbitrárias conjecturas, inclusive com expressões como “leva a crer” (SIC, p. 22) e “ao que tudo indica” (SIC, p. 25), o que mostra que não há provas, mas meros “achismos” desprovidos de quaisquer elementos fático-probatórios que lhes sustentem. Tanto que o próprio Presidente da Câmara afirmou, na decisão que recebeu a denúncia, que “Não se pode permitir a abertura de um processo tão grave, como é o processo de impeachment, com base em mera suposição de que a presidente da República tenha sido conivente com atos de corrupção”, com base em “meras ilações e suposições”[7].

O argumento que ganhou maior notabilidade contra a Presidente foi o das chamadas “pedaladas fiscais”[8] (sic). Neste caso, o fato de não repassar previamente aos bancos públicos o dinheiro necessário para pagamento de programas sociais, com os bancos então realizando os pagamentos mesmo sem ter recebido o dinheiro do Governo Federal. Nisso o Tribunal de Contas da União (TCU) entendeu que se trataria de operação equivalente a “operações de crédito”, ao passo que a Lei do Impeachment fixa como crime de responsabilidade a realização de operações de créditos com outros entes federativos (art. 10, n. 9, da lei 1.079/50).

Aqui temos dois problemas. Primeiro, equivalente a operação de crédito não é o mesmo que “operação de crédito”. O TCU usou aqui o instituto da analogia, já que operação de crédito, em sentido estrito, não houve, tanto que o TCU afirmou que se trata de operação que a ela se assemelha. Ora, se crimes de responsabilidade são crimes (como são), descabem juízos analógicos como este. Não há fato tipificado como crime de responsabilidade, portanto.

Parecer de Ricardo Lodi[9] é peremptório ao explicar que “é preciso definir o que é juridicamente uma operação de crédito, no âmbito do contexto normativo em questão, a fim de evitar que outras relações jurídicas, que sejam de interesse da sociedade e das instituições financeiras oficiais, tenham que deixar de ser efetivadas”, aduzindo a seguir que o nosso Direito Financeiro positivo tem conceitos normativos que não abarcam as condutas imputadas à Presidente da República (cf. art. 29, III, da Lei de Responsabilidade Fiscal e art. 3º da Resolução do Senado n.º 03/01), donde “a partir de uma interpretação da expressão operação de crédito que preserva os limites hermenêuticos do instituto […] a operação de crédito pressupõe a transferência de propriedade dos recursos da instituição financeira para o mutuário, acarretando o reconhecimento, por parte deste de um passivo. Quando o mutuário da operação de crédito é o poder público, por envolver o aumento do endividamento estatal com reflexos no montante da sua dívida pública, alguns requisitos devem estar presentes, como a prévia autorização orçamentária, a necessidade de lei específica e o controle exercido pela Senado Federal.” Daí concluir corretamente o autor (nos itens 16 e 17 do parecer) no sentido de que “Nesse conceito e a esse regramento não podem ser subsumidos quaisquer montantes constantes no passivo contábil da entidade pública, como o nascimento de débitos com instituições financeiras decorrentes do inadimplemento de obrigações contratuais, a partir da ausência de repasses de recursos para o pagamento de subvenções sociais pelos bancos públicos. Não se pode confundir operação de crédito com o surgimento de um crédito em decorrência de um inadimplemento contratual, que, obviamente, não sofre as mesmas restrições legais. A União, como qualquer outro contratante, deve responder pelo inadimplemento das obrigações por ela assumidas com as instituições financeiras que contrata, ainda que seja controladora dessas entidades. Assim, o mero adiantamento de valores por meio do fluxo de caixa para suprimento de fundos no âmbito na relação contratual entre a União e os bancos públicos, sem que tenha sido contratada qualquer operação de crédito, não se submete ao regramento jurídico das operações de crédito, inclusive no que se refere à vedação do art. 36 da LRF. Se assim não fosse, não seria possível à União contratar qualquer serviço com os bancos públicos, diante do risco sempre existente de inadimplemento de qualquer das obrigações estatais, o que geraria um direito de crédito que não estaria submetido aos ditames normativos das operações de crédito. Estando correto esse raciocínio, a União só poderia contratar os seus serviços com bancos privados, o que, decerto, é absurdo que demonstra o equívoco do caminho hermenêutico que levou a tal conclusão, e que, portanto, não deve ser adotado.” (grifos nossos). Daí a espirituosa afirmação do autor, no sentido de que somente uma “pedalada hermenêutica”[10] poderia enquadrar a conduta da Presidente da República (pelas “pedaladas fiscais”) como crime de responsabilidade; além de corretamente destacar que não é a violação da Lei de Responsabilidade Fiscal que constitui crime de responsabilidade, mas somente aquelas violações que a Lei do Impeachment reconhece como tais. Remete-se aqui à íntegra do referido parecer, aqui já disponibilizado (em nota do início deste parágrafo), que esmiúça amplamente as questões e refuta pontualmente as alegações da denúncia de impeachment acerca deste e outros temas.

Mas, ainda que se entenda que não haveria aqui uma analogia, mas uma verdadeira “operação de crédito” (o que, como visto, não há), há outra questão. O crime de responsabilidade em questão fala em operação de crédito junto a “entes federativos”. Entes federativos são a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, conceito este que não abarca “bancos públicos”. Novamente, a taxatividade inerente aos crimes e, portanto, aos crimes de responsabilidade não admite a equiparação interpretativa de bancos públicos e entes federativos. Se a Lei de Responsabilidade admite essa equiparação, a Lei do Impeachment não a admite – e não consta nesta que qualquer violação à Lei de Responsabilidade Fiscal constitua crime de responsabilidade. Tão somente a violação à lei orçamentária, embora estritamente nos termos em que a Lei 1079/50, assim se considera. Portanto, somente as hipóteses nela tipificadas taxativamente como crimes de responsabilidade o são. Daí a improcedência também desta alegação da denúncia (ao passo que não se pode, por “alquimia hermenêutica”, querer transformar dois mandatos em apenas um sem alteração constitucional formal nesse sentido, vale ressaltar).Sendo que o próprio Presidente da Câmara dos Deputados, dois meses antes de receber a denúncia, havia afirmado que as “pedaladas” não constituíam crime de responsabilidade[11] (a mostrar, novamente, que se trata de decisão puramente política, e não técnica, a de receber a denúncia por este fundamento).

Ademais, é preciso lembrar que o TCU, ao deliberar dessa forma, alterou entendimento sedimentado em sentido oposto – que considerava regulares tais procedimentos adotados pela Chefe do Executivo, assim como o fez quando ações similares foram praticadas por muitos dos ex-Chefes do Executivo anteriores. Ora, nada impede que o TCU proceda a um “overruling”, sem embargo, ele não pode frustrar a legítima expectativa de comportamento formada anteriormente. Sua mudança poderia vir como uma sinalização de que, no futuro, tais ações não seriam mais aceitas, mas não “mudar as regras do jogo” durante o mesmo. Afinal, como disse o Ministro Roberto Barroso em um julgamento do STF[12], considerando que a norma jurídica é fruto da interpretação de textos normativos (embora respeitados os limites semânticos do texto), a mudança da jurisprudência implica em mudança do Direito vigente e, portanto, precisa respeitar o princípio da segurança jurídica e seu subprincípio da confiança legítima, donde evidente que, tendo a Presidência confiança na jurisprudência anterior do TCU, não pode ser condenada por fazer justamente o que era permitido pela referida jurisprudência anterior.

Invoca-se, ainda, a questão dos “decretos não-numerados”, que abriram créditos extraordinários incompatíveis com a Lei Orçamentária, hipótese que defende a denúncia ser enquadrável no crime de responsabilidade previsto no art. 10, n. 6 da Lei do Impeachment. Mas, ainda que assim se pense, há uma questão fundamental a considerar: posteriormente, foi aprovado projeto de lei que alterou a Lei Orçamentária, por assim dizer, “recepcionando” os decretos não-numerados em questão (referimo-nos à aprovação do PLN 5/2015). Ora, se o bem jurídico protegido é o respeito à Lei Orçamentária e esta é posteriormente alterada pelo Congresso Nacional, no curso do mesmo exercício financeiro, para ratificar os decretos não-numerados que abriram os créditos extraordinários, então temos aqui a ratificação parlamentar e a consequente ratificação da Lei Orçamentária. Se o bem jurídico é a preservação da Lei Orçamentária e se esta posteriormente ratifica os créditos extraordinários anteriormente em desacordo com ela, então a conduta deixou de ser considerada criminosa. Temos aqui, no mínimo, verdadeira abolitio criminis, ante a ratificação parlamentar e legal em questão: não por revogação do tipo penal, mas pelo seu bem jurídico não ter sido violado, ante a adequação da lei orçamentária aos créditos extraordinários, em verdadeira ratificação – e, se houve ratificação da lei orçamentária, não se pode seriamente dizer que teria havido crime de responsabilidade contra a lei orçamentária… Ora, seria um teratológico e incompreensível formalismo exacerbado continuar considerando criminosa uma conduta de violação da lei orçamentária por abertura de créditos extraordinários com ela incompatíveis se a própria lei orçamentária é alterada para ratificar os créditos extraordinários em questão e tornar aqueles, assim, com ela compatíveis – até porque, como bem destaca o já citado parecer de Ricardo Lodi, os créditos suplementares se referem a mudanças nas metas de superávit primário, que são feitas inicialmente por lei orçamentária de ano anterior, donde a aprovação da alteração das metas efetivamente convalidaram os decretos de abertura de créditos extraordinários em questão (convalidação esta que se deu, como visto, pela aprovação do PLN 5/2015), autor este que conclui (no item 45 de seu parecer) que “Se assim não fosse, as dificuldades econômicas supervenientes à elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias não poderiam ser enfrentadas pelo Governo, pois, justamente em um quadro de escassez de recursos, é que se mostra preciso rever as prioridades entre fazer o superávit primário ou atender as despesas previstas em outras rubricas orçamentárias, que, provavelmente, deverão ter que sofrer uma equalização, à luz da nova situação fiscal. De todo modo, essa é uma decisão que pertence ao Parlamento, e isso foi preservado no caso concreto”. Além do que, mais uma vez, é preciso lembrar que também essa prática vem sendo executada repetidamente por vários ex-Chefes do Executivo – gerando, pois, legítima expectativa de comportamento –, sem que nunca tivesse sido questionada ou pior, que se caracterizasse tal ato como crime, donde o princípio da segurança jurídica e seu subprincípio da confiança legítima restam violados pelo casuísmo de aplicação seletiva dessa hipótese contra a atual Presidente da República. Bem como violado o princípio da isonomia, ao se visar a aplicação seletiva de um crime de responsabilidade contra inimigo(a) político(a), como evidentemente é o caso (se historicamente isso foi tolerado de outros, no mínimo teríamos que ter aqui um “pure prospective overruling” para aplicar tal novo entendimento somente para processos futuros, ante os citados princípios da segurança jurídica e da confiança legítima).

Cite-se, ainda, fato que não consta (pelo menos ainda) do pedido de impeachment, mas que ganhou enorme repercussão nos últimos dias, a saber, o teor da conversa da Presidente Dilma com o ex-Presidente Lula, em grampo objeto da Operação Lava Jato, pelo qual aquela disse que enviaria um “termo de posse” para este usar apenas caso precisasse (e nada mais). Primeiro, é preciso discutir a legalidade dessa gravação, já que o próprio juiz Sérgio Moro reconheceu que a gravação foi feita após ele ter determinado o fim do grampo, embora inexplicavelmente não tenha visto ilegalidade nisso[13]. Ora, se não havia mais autorização legal para o grampo, este constitui prova ilícita, a qual, portanto, não pode motivar condenação nenhuma, seja por crimes comuns, seja por crimes de responsabilidade: e pouco importa se o Governo admitiu a conversa posteriormente, pela teoria dos frutos da árvore envenenada, que obviamente abarca a “confissão extrajudicial”, que é, afinal, meio de prova – e aqui cabe citar preciso artigo de Lenio Streck[14], pelo qual ele corrobora a questão da ilicitude da prova em questão (ora, tendo sido determinado o fim do grampo, gravações posteriores a tal decisão judicial não podem ser consideradas). Segundo, cabe considerar que em hipótese alguma um juiz poderia divulgar ao público uma interceptação telefônica envolvendo a Presidente da República, pelo simples fato de que ele não tem competência alguma para fazê-lo, devendo tão somente remeter, sob sigilo, a questão ao STF, ainda que a intercepção telefônica fosse, em princípio, regular, o que, de fato, não era (somente o STF poderia eventualmente decidir sobre divulgar tal conversa, por ser o juiz natural de conversas interceptadas junto a autoridades). O que significa, mais uma vez, que um impeachment motivado nisto seria inconstitucional, no mínimo, pela vedação constitucional ao uso de provas ilícitas no processo (art. 5º, LVI c/c X e XII, ambos da CF/88, além, é claro, do que dispõem a lei 9.296/96, art. 9.º e 10, e a Resolução n. 59/2008 do CNJ, com redação dada pela Resolução n. 217/2016, at. 17).

Mas, superado este aspecto, no mérito dita gravação também não constitui prova nenhuma de crime de responsabilidade contra o funcionamento do Poder Judiciário. Afirma a mídia que a Polícia Federal interpretou essa fala da Presidente Dilma ao ex-Presidente Lula como uma espécie de recado a este para se tornar ministro apenas se vislumbrasse receio de ter sua prisão decretada por Sérgio Moro, para transferir sua competência ao STF. Convenhamos, trata-se de uma teratológica ilação pautada pura e simplesmente no subjetivismo (achismo) dos policiais em questão. A explicação da Presidência da República, também divulgada na mídia, é, no mínimo, defensável (senão verossímil): assinar o “termo de posse” apenas se Lula não pudesse comparecer pessoalmente a Brasília para tanto (a se entender que isso constituiria uma irregularidade formal eventualmente passível de anular a posse, tal é irrelevante para fins de “provar” dolo da Presidente da República, como muitos querem fazer crer). Ao passo que, em Direito Penal (e, portanto, em crimes de responsabilidade), vige notoriamente a máxima do in dubio pro reo, donde, sem outras provas, essa gravação sozinha não tem o condão de provar uma tentativa de atentar contra o funcionamento do Poder Judiciário – seria teratológico entendimento em contrário. Ao passo que a conduta concreta em questão, de supostamente simular ato jurídico com o fim de alterar competência, também não se encontra previsto nas taxativas hipóteses legais de crimes de responsabilidade – até porque, é bom que se diga, haja vista o “burburinho” causado, a transferência do foro de julgamento em nada altera a competência do inquérito que está ora em curso: a autoridade policial continua competente para continuar a investigação. Ou será que estamos admitindo que o STF não é capaz de conduzir um Inquérito e, eventualmente, uma ação penal?

Além disso, cabe dizer que não há aqui sequer irregularidade do ponto de vista “administrativo”, o que contudo, não encontra correspondência às hipóteses legais para um pedido de impeachment. A nomeação de Ministros de Estado é, nos termos do art. 84, I, da CF/88, ato de governo e não constitui um ato administrativo propriamente dito, não estando, em princípio sujeita, sequer, ao controle judicial. A nomeação de Ministros(as) de Estado é ato privativo do(a) Presidente da República, estando submetida tão somente às condicionantes do disposto no art. 87 da CF/88.

Absurdo dizer-se que a “renúncia fiscal” da Copa do Mundo seria crime de responsabilidade. Primeiro, foi uma das condições para o Brasil poder receber a Copa do Mundo. Contudo, o principal é que tal foi feito por lei que, como tal, foi obviamente aprovada pelo Congresso Nacional. Logo, não se tratou de ato da Presidente da República, por se tratar de uma lei aprovada pelo Parlamento e por ela sancionada.

Em suma, de acordo com o que se apurou até o momento, não há crime de responsabilidade cometido pela Presidente da República, como, aliás, atestaram pareceres de diversos juristas de peso da nossa comunidade jurídica[15] – e, sem crime de responsabilidade, o impeachment é inconstitucional, por violação do princípio presidencialista, porque impeachment não é sinônimo de voto de desconfiança parlamentarista. Inconstitucional, ainda, por violação do art. 85, parágrafo único, da Constituição, que remete à lei (recepcionando a Lei 1.079/50 – como já mais de uma vez se manifestou o STF tanto no procedimento envolvendo o ex-Presidente Collor, quanto no procedimento atual) a definição (taxativa) dos crimes de responsabilidade – e isso independente da natureza penal ou não deles, pois se a Constituição remete à lei a sua definição, então evidentemente dita lei, até por seu caráter sancionatório, deve ser interpretada de forma estrita e restritiva.

Portanto, pode o(a) Presidente da República impetrar mandado de segurança perante o Supremo Tribunal Federal para que este barre ou nulifique processo de impeachment em tramitação sem que haja fato enquadrável hipoteticamente como crime de responsabilidade a justificá-lo. Obviamente, o juízo de mérito sobre se a pessoa praticou ou não fato enquadrável como crime de responsabilidade e se deverá ou não sofrer impeachment por isso é decisão soberana do Senado – a questão é que, como não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa (Gadamer/Streck), não se pode dizer que um fato que não constitui crime de responsabilidade seja enquadrado como crime de responsabilidade, simplesmente por uma vontade política, o que, mais uma vez, configuraria abuso de poder, razão pela qual não pode o Senado decretar o impeachment sem que haja hipótese de crime de responsabilidade em tese cometido pelo(a) Presidente da República. O mesmo vale para a Câmara, que não pode dar início a processo de impeachment se, em tese, os fatos apontados na denúncia não correspondem a crime de responsabilidade (o que vale também para o Senado, quanto ao recebimento da denúncia).

Aí entra a competência do Supremo Tribunal Federal: impedir que tramite ou declarar a nulidade de eventual decretação de impeachment sem que o fato que o ensejou constitua crime de responsabilidade. Do contrário, o instituto do impeachment terá sido equiparado ao instituto do voto de desconfiança parlamentarista, o que seria teratológico e, assim, manifestamente inconstitucional, absurdo e abusivo.

Muito se fala do impeachment de Collor, no sentido de que este foi condenado por crime de responsabilidade, mas depois foi absolvido pela Justiça, quanto a crimes comuns. A questão, no entanto, era que estava pelo menos defensável que as condutas de Collor se enquadrassem em hipótese de impeachment. É absolutamente normal que a Justiça Penal seja mais rigorosa que a Justiça Política (a do processo de impeachment) na averiguação da ilicitude de determinados fatos (aliás, é o que acontece entre as Justiça Civil e Criminal: esta é mais rigorosa que aquela, donde aquela pode considerar uma conduta contra a honra de outrem como dano moral e esta não considerar tal conduta como “crime contra a honra”, por exemplo). Nunca se esqueça, ademais, que o STF, quando julgou Collor por crime comum, excluiu do rol de provas certos documentos obtidos pela Polícia Federal de forma ilícita – o ex-Presidente foi absolvido por falta de provas, por questão (prova obtida por meio ilícito) que, aliás, pode voltar a ter significativa importância no atual procedimento.

A questão é que é preciso que seja pelo menos defensável o enquadramento da conduta como crime de responsabilidade para que seja cabível o processo de impeachment – e, como visto, tal não é defensável no caso da Presidente Dilma Rousseff. Basta ver que os noticiários diversas vezes afirmaram que seria a crise econômica ou sua superação que seria “decisiva” para saber se a Presidente Dilma sofreria ou não o impeachment: ora, o decisivo é ela ter praticado ou não um crime de responsabilidade! É uma surreal inversão de valores querer que haja impeachment sem crime de responsabilidade. Não se pode decretar o impeachment por uma “desastrosa política econômica” ou algo do gênero sem que a lei taxativamente preveja tal hipótese como crime de responsabilidade. Há, obviamente, um forte componente político (discricionário) na decisão parlamentar de iniciar e depois de decretar o impeachment de um(a) Presidente da República, isso é inevitável: mas, para que seja admissível tal julgamento, é preciso que haja fato tipificado como crime de responsabilidade comprovadamente praticado pelo(a) Presidente da República para que seja juridicamente possível o pedido de impeachment. Do contrário, impeachment terá sido equiparado a voto de desconfiança parlamentarista sem previsão constitucional que o autorizasse – e como o regime de governo é definido pela Constituição, há uma reserva de Constituição, e não de lei, para uma tal desnaturação normativa da natureza jurídica do presidencialismo, que tem em sua essência a não-destituição do(a) Chefe de Governo por simples crise política ou perda de apoio parlamentar, mas apenas quando este(a) tenha comprovadamente praticado conduta enquadrável, em tese, como crime de responsabilidade, nas taxativas hipóteses legais.

Em sede de conclusão, cabe a reiteração da tese já afirmada: deve o STF declarar a nulidade de eventual decretação de impeachment sem que o fato que o ensejou constitua crime de responsabilidade, ou mesmo impedir a tramitação de um tal processo. Do contrário, o instituto do impeachment terá sido equiparado ao instituto do voto de desconfiança parlamentarista, o que seria teratológico e, assim, manifestamente inconstitucional e absurdo. Parece haver interesse de agir para parar a tramitação de processo de impeachment sem crime de responsabilidade a qualquer momento. Mas, certamente, o interesse de agir existirá pelo menos quando for afastado(a) o(a) Presidente da República, quando do recebimento da denúncia pelo Senado (que, pela decisão do STF na ADPF 378, pode não receber a denúncia – algo normal nos processos penais em geral, nos quais o recebimento da denúncia é uma decisão que admite o seu não-recebimento, diga-se de passagem, sendo compatível com o bicameralismo que se entenda dessa forma em processos tão dramáticos, excepcionais e sensíveis à democracia como o é o processo de impeachment).

Ou seja, Supremo Tribunal Federal deve garantir a supremacia da Constituição, do Estado Democrático de Direito ao rejeitar o Direito Penal do Inimigo e impedir a quebra das regras do jogo, constitucionalmente impostas, àqueles que boa parte da opinião pública (sic) considera execráveis (e a menção ao Direito Penal do Inimigo se justifica devido à absurda necessidade de se reafirmar que elas valem a todas e todos, mesmo àquelas e àqueles de quem se discorda ou mesmo não se gosta etc.). Esse é o preço de vivermos em um Estado Democrático de Direito, que tem em si inerente o respeito à Constituição. Não interessa aqui, do ponto de vista jurídico, se alguém considere Dilma e o PT “bandidos” (sic), ou se considera uma “cara-de-pau” a alegação de ausência de provas contra ela, o ex-Presidente Lula etc. Quem acusa tem que provar e não há provas de participação da Presidente Dilma em atos concretos de corrupção e não se aplica o “não tinha como não saber” fora da responsabilidade civil e trabalhista (não se aplica a impeachment). Pedaladas (sic), na forma como praticadas, não são crime de responsabilidade (o seriam se fossem verdadeiras operações de crédito e com “ente federativo”, não com “banco público”, e não cabe analogia por crime de responsabilidade ser matéria penal, cf. STF) e decretos não-numerados foram referendados pela aprovação do Congresso de tais gastos governamentais (abolitio criminis: absolve-se acusados quando a conduta é legalizada). É preciso levar o Direito a sério. Esse é o único intuito deste artigo quando se propôs a demonstrar que o Direito pátrio não enquadra as condutas da Presidente da República como crimes de responsabilidade, não se podendo ainda admitir teratologias na tentativa de se “forçar” a incidência apenas por um “ato de vontade” do intérprete, como bem sabe a jurisprudência uníssona que diz que, embora não caiba, como regra, atacar decisão judicial por mandado de segurança, isso é excepcionalmente cabível, quando a decisão seja teratológica – a analogia é perfeita para demonstrar o Supremo Tribunal Federal não pode considerar como válida a imputação a um(a) Presidente da República de uma conduta como crime de responsabilidade quando seja indefensável o enquadramento de tais condutas como tal. Essa é a questão.

Veja aqui notas e referências e informações sobre os autores

Brasil & Brazil

por GUSTAVO CARDOSO
Público/ Portugal


O primeiro Brasil deste título é o país do manifestródomo no qual a câmara de deputados do Congresso brasileiro se transformou, através das declarações sobre as razões e motivos de se votar a favor, ou contra, o impeachment da Presidenta da República Federativa do Brasil, Dilma Rousseff.

O segundo Brazil deste título é o que dá nome à obra de Terry Gilliam no seu filme de 1985. Uma sociedade, ou talvez um país, onde predomina um distópico, e absurdo, quotidiano em que há um Ministério da Informação com o monopólio do arranjo dos canos (sim, das canalizações) e onde o lema “a suspeita gera confiança” molda o dia-a-dia.

Porquê referir os dois “brasis”? Porque o sucedido na Câmara dos Representante e sua mediatização televisiva aproxima, a passos largos, a sociedade distópica do Brazil de Gilliam da actual sociedade do Brasil de Dilma, Temer e Cunha – para falar apenas de três dos personagens centrais do actual processo político.

O Brasil que já foi o país do futuro, que já foi aspirante a membro permanente do conselho de segurança da ONU e a potência mundial do hemisfério Sul, encaminha-se, por opção dos seus próprios representantes eleitos, para uma caricatura daquilo que pretendia ser.

Sim, é verdade que a corrupção de natureza endêmica existe em todas as sociedades e que o Brasil não é diferente e, também, que o crescimento económico dos últimos anos a potenciou.

Também é verdade que o Brasil, como todas as democracias, tem problemas de financiamento ilegal dos partidos. Mas também é verdade que toda a gente no Brasil, ou pelo menos os políticos brasileiros de todos os partidos, sabem que o problema não é do PT ou do PSDB – os dois últimos partidos que elegeram presidentes.

O problema reside “na situação” que infiltra esses partidos quando estão no poder ou quando partidos do centrão permanecem tempo demais em alianças com diferentes governos – como o PMDB que esteve também nas últimas décadas em vários governos, incluindo os de Lula e Dilma.

Mas o Brasil também é o país de governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Lula e do combate à pobreza, da criação de programas de sucesso no combate à inflação com FHC, criação de novas classes médias por ambos, da presença na arena global diplomática (na ONU e na denúncia do excesso de vigilância electrónica global), da liderança tecnológica, da liderança na denúncia das alterações climáticas, da promoção da cultura para todos e da organização de Jogos Olímpicos.

No entanto, desde que a democracia se sedimentou no Brasil, com as eleições directas após 1989, o Brasil teve cinco Presidentes – Collor de Melo, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff.

De entre esses cinco, teve um Presidente destituído por impeachment, Collor de Melo, uma Presidenta em processo de impeachment e um ex-Presidente, Lula da Silva, empurrado para o meio do actual processo contra Dilma Rousseff.

Em cinco Presidentes, num período de duas décadas e meia, poderemos ter, a breve trecho, três presidentes envolvidos em processos de impeachment, algo que nos mostra, não uma excepção, mas a assunção de uma “anormal” normalidade política.

A questão que fica, ainda, por responder é saber se o Brasil pode aspirar a ser outra coisa que não um Brazil se tornar os impeachments a sua normalidade política. Daí que, talvez, a única alternativa a se tornar num Brazil distópico seja mesmo ter “eleições já” tal como noutro momento histórico foi preciso no Brasil dizer “directas já”.

 

 

Professor Catedrático do ISCTE-IUL e investigador do College d’Études Mondiales na FMSHGustavo Cardoso

Os deputados golpistas no circo do impeachment: “Pelo meu cachorro Lulu, pela minha esposa, minha amante e minha namorada, meu filho que vai nascer, eu voto sim”

A sessão do impeachment, presidida pela ladrão Eduardo Cunha, teve todo tipo de baixaria. Foi uma cusparada na cara do povo

 

O deputado Tiririca resumiu os votos da maioria dos seus colegas em uma representação fiel, verdadeira, que a imprensa golpista considera um deboche:

“Pela Florentina de Jesus, pelo meu cachorro Lulu, pela minha irmã Duculina, pela minha esposa, minha amante e minha namorada, meu filho que vai nascer em 2020, eu voto sim”.

O parlamentar, que mudou o voto na última hora, também disse “sim” à abertura de processo de impeachment, criticou às referências a familiares usadas por diversos colegas para justificar a manobra para cassar o mandato presidencial.

Na hora de votar para valer, Tiririca foi simples e menos folclórico do que a maioria dos colegas pró-impeachment. “Pelo meu país, meu voto é sim”, declarou no plenário.

Escrevem Rogério Galindo e Mariana Balan:

Dos 367 deputados federais que votaram pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) no domingo, apenas 32 fizeram alguma menção à hipótese de crime de responsabilidade ou às pedaladas fiscais em seus discursos. Outros 335, o que equivale  1 91% dos votos pró-impeachment, não mencionaram o real tema em discussão e fizeram apenas discursos genéricos.

Em tese, o que estava sendo discutido na sessão de domingo era o relatório do deputado Jovair Arantes (PTB-GO) relativo ao pedido de impeachment da presidente. Ou seja: o que os deputados deveriam dizer era se o relatório apontava ou não crime de responsabilidade da presidente – caso contrário, o processo não deveria seguir para o Senado.

As menções a Deus foram mais comuns entre os eleitores pró-impeachment do que as menções às pedaladas. Houve 45 menções a Deus ou à religião do parlamentar: 40% a mais. As menções às famílias dos deputados, foram muito mais comuns: 134 parlamentares pró-impeachment citaram em seu voto os pais, filhos, netos, bisnetos e até noras, irmãs ou tias falecidas. Isso equivale a 418% das menções ao crime de responsabilidade.

Outros 59 deputados fizeram menções vagas a “corrupção”, “roubalheira” ou outras palavras semelhantes, sem no entanto fazer ligação entre isso e o que estava efetivamente sendo julgado em plenário.

Veja videos:

O voto dos golpistas:

O voto de Tiririca:

O eleitor pode confiar em deputados traidores, mentirosos, hipócritas e ladrões?

O Brasil está virando o país dos infiéis, dos delatores, dos traidores, dos farsantes, dos dissimulados, dos dedos duros, das pessoas sem palavra, sem caráter.

Silvério dos Reis, depois de trair Tiradentes, teve que se esconder no Maranhão onde morreu. Calabar foi enforcado pelos pernambucanos. Cabo Anselmo anda por aí, depois de fazer plástica, com identidade falsa oferecida pela polícia de São Paulo, que teve Michel Temer como secretário da Seguranca. Da primeira vez, ele sucedeu Miguel Reale Júnior, autor do pedido de impeachment. O Reale pai escreveu o ato constitucional n.1 da ditadura militar de 64. Acrescente que Temer exerceu o cargo por três vezes. Da última vez, no corrupto governo Fleury.

Ao protocolar na Câmara dos Deputados o pedido de impeachment, Reale garantiu: “Como lutamos contra a ditadura dos fuzis, lutamos agora contra a ditadura da propina”.

Deputado cearense Adail Carneiro está virando piada nacional por fazer uma das mais apaixonadas declarações de amor à luta em defesa de Dilma e de Lula, para acabar votando contra no processo de impeachment na sessão plenária da Câmara dos Deputados.

Adail é um milionário que fez fortuna, inclusive com contratos públicos, está em seu primeiro mandato como Deputado Federal e tem como base eleitoral a região do Vale do Jaguaribe no interior do Ceará.

Mudar de lado tem se tornado uma das suas especialidades, tendo em vista que em menos de dois anos já mudou do PDT para o PHS e agora recentemente para o PP. Três partidos em dois anos.

Nas últimas semanas Adail participou das manifestações em Fortaleza em defesa da luta do PT. Entregou carta de apoio à presidenta Dilma, bateu foto bem coladinho na Presidenta no Palácio e até colou adesivo “não vai ter golpe” no peito para abraçar Lula. Mas na hora da verdade fez exatamente o contrário votando com traição.

Ser do contra e ter opiniões diferentes faz parte do jogo democrático. Agora, mudar de lado e adotar um voto de traição em relação a tudo que ele vinha defendendo até sábado, é uma atitude que os eleitores normalmente não costumam perdoar.

 

Os votos bizarros do impeachment de Dilma

As declarações de votos do ‘não’ ou do ‘sim’ ao impeachment, na Câmara dos Deputados, que não usaram os termos “pedalada fiscal”, “crime”, “culpada” ou “inocente”, precisam ser declaradas nulas.

Informou a golpista Globo: “Seja qual for a ordem de chamada dos deputados, já se sabe que a votação do impeachment, que está marcada para domingo (17) à tarde, deve ser longa, vai levar mais de quatro horas. Isso porque cada um dos 513 deputados vai ser chamado. Tem que se aproximar do microfone e falar o voto: ‘sim’ ou ‘não’ ao impeachment. Mas como esse é um momento considerado importante, a maioria dos deputados quer falar alguma coisa para justificar o voto. Mas essa justificativa vai ter que ser bem objetiva”.

O professor Fernando Mendes disse que a justificativa dos deputados, que em sua maioria mencionaram Deus ou a própria religião, além da família, em alguns casos, nominando parentes, como netos, é uma tentativa de “se abster de uma responsabilidade individual” e de eventual reação de eleitores contrários ao impeachment. “Eles [deputados] se escoram nessas instituições para não dar as verdadeiras razões de se votar contra a democracia”.

Ironiza um portal de humor Sensalionista sobre “os momentos mais bizarros e as justificativas mais loucas da votação do impeachment”. Vale a leitura aqui

CNBB pede respeito ao Estado Democrático de Direito: “É preciso ter consciência de que não pode ser um mero interesse pessoal, partidário e corporativista. Tem que seguir a Constituição e a verdade dos fatos”

Em documento divulgado nesta quinta-feira, 14, intitulado “Declaração da CNBB sobre o momento nacional”, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil diz que o processo de impeachment de uma presidente da República não pode atender “interesses pessoais, partidários e corporativistas”, e deve-se respeitar “o ordenamento jurídico do Estado Democrático de Direito”.

O documento foi lido durante a 54ª Assembleia Geral da CNBB, que termina nesta sexta-feira, 15, em Aparecida, interior paulista. A entidade católica diz que o “bem da nação requer de todos a superação de interesses pessoais, partidários e corporativistas”.

O presidente da CNBB, dom Sergio da Rocha, afirmou que a entidade optou por “não manifestar uma posição político-partidária, nem emitir uma parecer mais técnico” sobre o impeachment de Dilma porque seria entrar em um campo que não diz respeito à Igreja Católica.

Já o secretário-geral da CNBB, dom Leonardo Ulrich Steiner, defendeu o que estabelece a Constituição sobre o assunto. “Seria deselegante de nossa parte ficarmos citando nomes, mas creio que essas questões todas envolvem também o julgamento do impeachment. É preciso ter consciência de que não pode ser um mero interesse pessoal, partidário e corporativista. Tem que seguir a Constituição e a verdade dos fatos”, afirmou. Transcrito do portal do Conselho Nacional de Igrejas de Igrejas Cristãs do Brasil

Os policiais da ditadura de 64 Reale e Temer tramaram o golpe do impeachment de Dilma

Miguel Reale Jr, junto aos juristas Hélio Bicudo e Janaina Paschoal, protocolou na Câmara dos Deputados um pedido de abertura de processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, que faz Michel Temer presidente, e Eduardo Cunha vice.

Os policiais Miguel Reale Jr e Michel Temer sempre fizeram parceria. Eram pessoas confiáveis da Ditadura Militar de 1964. Em 31 de janeiro de 1984, Reale passou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo para o parceiro e amigo Michel Temer, que foi três (3) vezes nomeado chefe das policias civil e militar de São Paulo. Confira aqui

Para exercer o cargo, precisavam do apoio dos aparelhos repressores do regime autoritário.

As polícias “foram criadas por um decreto-lei da Ditadura de 1969”, portanto, a polícia militar “é uma invenção, uma criação da ditadura”, diz Jair Krischke.

Segundo ele, “o decreto dizia que a polícia militar é força auxiliar e reserva do exército. Na Constituição cidadã de 1988 aconteceu um ‘copia e cola’, copiaram exatamente o texto do decreto-lei da Ditadura e colocaram na Constituição, dizendo que as polícias militares são forças auxiliares e reserva do exército”.

Outra prática que se mantém é a expressão utilizada pela polícia, “auto de resistência”, para justificar a morte de civis. “No tempo da Ditadura criou-se esse ‘auto de resistência’, porque a ditadura queria justificar sempre os assassinatos que cometia. (…) Esse ‘auto de resistência’ continuou sendo praticado pelas polícias militares, a polícia que mais mata no mundo”, pontua. Com a subordinação da polícia militar ao exército, acrescenta, “a formação do militar é destinada a prepará-lo para enfrentar o inimigo, vencê-lo e submetê-lo à sua vontade, isso é ser militar; não tem nada com polícia”.

O pai Miguel Reale, em 1969, foi nomeado pelo presidente Artur da Costa e Silva para a “Comissão de Alto Nível”, incumbida de rever a Constituição de 1967. Resultou desse trabalho parte do texto da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, que consolidou o regime militar no Brasil.

Janaina Paschoal, coroada “a musa do golpe”, é a pomba-gira que participou com Hélio Bicudo de uma rídicula manifestação nazi-fascista.

Os Reale, pai e filho, Janaina e Temer são considerados juristas notáveis, e seus livros adotados nas nossas faculdades de ciências jurídicas, que promovem o ensino de um direito conservador, como elemento de conservação das estruturas sociais. Assim se explica a OAB apoiar o golpe, a criação da república do Galeão do Paraná de Moro, a prática da tortura física  por advogados delegados, uma “justiça PPV”, cara, anti-social, as prisões debaixo de vara, um sistema penitenciário tipo campos de concentração, o assédio, a tortura psicológica para as delações mais do que premiadas, o Brasil campeão da censura judicial.

Veja neste vídeo Janaina aplaudida por Bicudo