Há cheiro de 1964 no ar. É meu dever dizer aos jovens o que é um Golpe de Estado, por Hildegard Angel

por Hildegard Angel

 

Manifestantes na Marcha da Família com Deus pela Liberdade em 19 de março de 1964 na Praça da Sé, em São Paulo. Fonte: Correio da Manhã.
Manifestantes na Marcha da Família com Deus pela Liberdade em 19 de março de 1964 na Praça da Sé, em São Paulo. Fonte: Correio da Manhã.
Marcha dos zumbis na véspera do Dia de Finados, em São Paulo, exigindo a derrubada de Dilma
Marcha dos zumbis na véspera do Dia de Finados, em São Paulo, exigindo a derrubada de Dilma
Capa golpista em 1964
Capa golpista para homenagear os garotos virgens de mulher, que propagavam nas ruas a intervenção do exército
Capa golpista em novembro de 2014
Capa golpista em novembro de 2014

**Há cheiro de 1964 no ar. Não apenas no Brasil, mas também nas vizinhanças. Acho então que é chegada a hora de dar o meu depoimento.

Dizer a vocês, jovens de 20, 30, 40 anos de meu Brasil, o que é de fato uma ditadura.

Se a Ditadura Militar tivesse sido contada na escola, como são a Inconfidência Mineira e outros episódios pontuais de usurpação da liberdade em nosso país, eu não estaria me vendo hoje obrigada a passar sal em minhas tão raladas feridas, que jamais pararam de sangrar.

Fazer as feridas sangrarem é obrigação de cada um dos que sofreram naquele período e ainda têm voz para falar.

Alguns já se calaram para sempre. Outros, agora se calam por vontade própria. Terceiros, por cansaço. Muitos, por desânimo. O coração tem razões…

Eu falo e eu choro e eu me sinto um bagaço. Talvez porque a minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no tranco, como se eu vivesse durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar atenção, caminhando como cabra cega num cenário de terror e desolação, apalpando o ar, me guiando pela brisa. E quando, finalmente, caiu-me a venda, só vi o vazio de minha própria cegueira.

Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais tivemos.

Outro dia, jantei com um casal de leais companheiros dele. Bronzeados, risonhos, felizes. Quando falei do sofrimento que passávamos em casa, na expectativa de saber se Tuti estaria morto ou vivo, se havia corpo ou não, ouvi: “Ah, mas se soubessem como éramos felizes… Dormíamos de mãos dadas e com o revólver ao lado, e éramos completamente felizes”. E se olharam, um ao outro, completamente felizes.
Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram, éramos e somos completamente infelizes!

zuzuangel

Cenas do filme "Zuzu Angel" de Sérgio Rezende, 2006
Cenas do filme “Zuzu Angel” de Sérgio Rezende, 2006

A ditadura militar aboletou-se no Brasil, assentada sobre um colchão de mentiras ardilosamente costuradas para iludir a boa fé de uma classe média desinformada, aterrorizada por perversa lavagem cerebral da mídia, que antevia uma “invasão vermelha”, quando o que, de fato, hoje se sabe, navegava célere em nossa direção, era uma frota americana.

 

 John F. Kennedy durante a visita do então presidente João Goulart aos Estados Unidos em 1962. Posteriormente descobriu-se que o presidente estadunidense planejava invadir militarmente o Brasil para depor o governo de Goulart.29 30

“John F. Kennedy durante a visita do então presidente João Goulart aos Estados Unidos em 1962. Posteriormente descobriu-se que o presidente estadunidense planejava invadir militarmente o Brasil para depor o governo de Goulart”. Wikipédia

 

Deu-se o golpe! Os jovens universitários liberais e de esquerda não precisavam de motivação mais convincente para reagir. Como armas, tinham sua ideologia, os argumentos, os livros. Foram afugentados do mundo acadêmico, proibidos de estudar, de frequentar as escolas, o saber entrou para o índex nacional engendrado pela prepotência.

As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas reviradas, papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada da noite ou sob o sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem explicações nem motivo, bastava uma denúncia, sabe-se lá por que razão ou partindo de quem, muitas para nunca mais serem vistas ou sabidas. Ou mesmo eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e pronto.

E todos se calavam. A grande escuridão do Brasil. Assim são as ditaduras. Hoje ouvimos falar dos horrores praticados na Coreia do Norte. Aqui não foi muito diferente. O medo era igual. O obscurantismo igual. As torturas iguais. A hipocrisia idêntica. A aceitação da sobrevivência. Ame-me ou deixe-me. O dedurismo. Tudo igual. Em número menor de indivíduos massacrados, mas a mesma consistência de terror, a mesma impotência.

Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de falar nas de ontem. Quando cochichavam sobre “as malas do Golbery” ou “as comissões das turbinas”, “as compras de armamento”. Falavam, falavam, mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava, pois não havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade, uma Justiça de verdade, um país de verdade.

E qualquer empresa, grande, média ou mínima, para conseguir se manter, precisava obrigatoriamente ter na diretoria um militar. De qualquer patente. Para impor respeito, abrir portas, estar imune a perseguições. Se isso não é um tipo de aparelhamento, o que é, então? Um Brasil de mentirinha, ao som da trilha sonora ufanista de Miguel Gustavo.

Minha família se dilacerou. Meu irmão torturado, morto, corpo não sabido. Minha mãe assassinada, numa pantomima de acidente, só desmascarada 22 anos depois, pelo empenho do ministro José Gregory, com a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.

Meu pai, quatro infartos e a decepção de saber que ele, estrangeiro, que dedicou vida, esforço e economias a manter um orfanato em Minas, criando 50 meninos brasileiros e lhes dando ofício, via o Brasil roubar-lhe o primogênito, Stuart Edgar, somando no nome homenagens aos seus pai e irmão, ambos pastores protestantes americanos – o irmão, assassinado por membro louco da Ku Klux Klan. Tragédia que se repetia.

Minha irmã, enviada repentinamente para estudar nos Estados Unidos, quando minha mãe teve a informação de que sua sala de aula, no curso de Ciências Sociais, na PUC, seria invadida pelos militares, e foi, e os alunos seriam presos, e foram. Até hoje, ela vive no exterior.

Barata tonta, fiquei por aí, vagando feito mariposa, em volta da fosforescência da luz magnífica de minha profissão de colunista social, que só me somou aplausos e muitos queridos amigos, mas também uma insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito de me julgar por ter sobrevivido.

Outra morte dolorida foi a da atriz, minha verdadeira e apaixonada vocação, que, logo após o assassinato de minha mãe, precisei abdicar de ser, apesar de me ter preparado desde a infância para tal e já ter então alcançado o espaço próprio. Intuitivamente, sabia que prosseguir significaria uma contagem regressiva para meu próprio fim.

Hoje, vivo catando os retalhos daquele passado, como acumuladora, sem espaço para tantos papéis, vestidos, rabiscos, memórias, tentando me entender, encontrar, reencontrar e viver apesar de tudo, e promover nessa plantação tosca de sofrimentos uma bela colheita: lembrar os meus mártires e tudo de bom e de belo que fizeram pelo meu país, quer na moda, na arte, na política, nos exemplos deixados, na História, através do maior número de ações produtivas, efetivas e criativas que eu consiga multiplicar.

E ainda há quem me pergunte em quê a Ditadura Militar modificou minha vida!

** O primeiro parágrafo original deste texto, que fazia referência à possível iminente tomada do poder de um governo eleito democraticamente, na Venezuela, foi trocado pela frase sucinta aqui vista agora, às 15h06m deste dia 24/02/2014, porque o foco principal do assunto (a ditadura brasileira) foi desviado nos comentários. Meus ombros já são pequenos para arcarem com a nossa tragédia. Que dirá com a da Venezuela!

*** Pelo mesmo motivo acima exposto, os comentários que se referiam à questão na Venezuela referida no antigo primeiro parágrafo foram retirados pois perderam o sentido no contexto.Pedindo desculpa aos autores dos textos, muitos deles objeto de reflexão honesta e profunda, e merecedores de serem conhecidos, mas não há motivação para mantê-los aqui no ar. O nível de truculência a que levou a discussão não me permite estimulá-la.

 

Ao editar o histórico texto de Hildegard Angel, acrescentei as ilustrações (T.A.)

 

 

Vira-latas que latem em troca de um prato de ossobuco

por Gilmar Crestani

Aliás, nem vira-lata faria o papel de morder o calcanhar do dono. Mas há brasileiros que, em troca de alguns afatos, se sujeitoam a tirar os sapatos para entrar nos EUA. Mais, são capazes de atuarem contra o próprio país.

 

Como alguns resistiram à ditadura

 

por Juremir Machado da Silva

Livros bons não faltam no Brasil. Salvo na ficção. Nas reportagens, por exemplo, pululam os bons textos. “A mulher que era o general da casa – histórias da resistência civil à ditadura” (Arquipélago editorial), do jornalismo Paulo Moreira Leite, é um deles. Moreira Leite, como correspondente da Gazeta Mercantil em Washington, obteve um documento com a transcrição dos 28 minutos do encontro, ocorrido em 30 de junho de 1962, na Casa Branca, entre o presidente John Kennedy, o seu assessor Richard  Goodwin e o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon. Hoje, conhece-se até uma gravação em áudio dessa reunião. Nela, Gordon pediu autorização para apoiar a preparação de um golpe militar no Brasil e ajuda financeira para isso. Fixou em oito milhões de dólares o necessário para derrubar Jango. Kennedy regateou e bateu o martelo em cinco milhões de dólares.

Paulo Moreira Leite é um defensor ferrenho da Comissão da Verdade. Justifica: “Os crimes contra os direitos humanos têm uma natureza específica: envolvem agentes do Estado que perverteram suas funções para perseguir e maltratar cidadãos que não tiveram o direito de se defender”. Além de perseguidos e torturados, quando não mortos ou obrigados a fugir para o exílio, eles foram julgados pelo Superior Tribunal Militar: “Um levantamento realizado pelo ‘Brasil: nunca mais’, a partir de 695 processos da Justiça Militar, entre 1964 e 1979, mostra que 7.367 brasileiros foram levados ao banco dos réus para prestar contas de atos considerados subversivos”. Mais: “Em 80% dos casos a denúncia sequer envolvia acusação de participação em ações armadas”. Era gente que tinha o péssimo hábito de exigir democracia ou de proteger perseguidos do regime ditatorial paranoico. Continue lendo