por Wilson Gomes
Sobre a questão da polícia militar brasileira, alguns preferem o diagnóstico-clichê de que é tudo um problema de militarização. Nesse raciocínio, assim que a polícia for desmilitarizada, tudo se resolverá. Pode ser, mas isso não decorre por força da lógica. Vejamos:
1) Já temos uma polícia “civil”. Faça o teste básico de “civilidade policial” e veja como se sente em relação a ela: Imagine-se sozinho, abordado por uma autoridade policial, às três da madrugada em um lugar deserto; Você se sentiria seguro e amparado se fosse um policial civil em vez de um militar? Eu, certamente não.
2) O problema da relação entre polícias e cidadãos no Brasil é de mentalidade e valores, portanto, é uma questão de cultura. É um problema clássico, já tratado teoricamente desde O Príncipe de Machiavelli na contraposição entre o “miles” (a força armada) e o “civis” (o cidadão). Hoje a questão é simples, eu acho: quando o seu status de “civis” (sujeito de direitos, soberano do Estado) é reconhecido, o sujeito que está diante do militar é tratado com “civilidade”, caso contrário, a polícia o trata como um “adversário”, “inimigo”, “súdito”.
3) No Brasil, o policial toma para si todo o poder discricionário: cabe a ele e só a ele decidir como deverá tratar você. Numa sociedade governada por leis (rule of law ou Estado de direito), quem estabelece como você deve ser tratado é a lei, não a autoridade: se estiver praticando um crime é criminoso, se não estiver, é um cidadão a ser servido e protegido. Quando a otoridade concentra em si todo o poder discricionário, abre-se a brecha, inclusive, para o preconceito de classe, raça, gosto político de quem o exerce. E a nossa polícia é homofóbica, racista, classista a não mais poder exatamente por isso. Amarildos são desaparecidos, homofobias em crimes são descartadas com leviandade por delegados e os pretos e pobres são esculachados diariamente por policiais “civis” e militares por causa disso.
4) Mesmo que toda a nossa polícia fosse não-militar isso não a tornaria automaticamente “civil”. A nossa atual polícia civil já é exatamente e apenas isso: não-militar. Mas não tem a menor noção do que significa soberania popular, igualdade, direitos, cidadania, civilidade. Vá numa delegacia (polícia civil, portanto) qualquer e a primeira coisa que verá estampada na parede é o artigo do código civil que “tipifica” o “desacato à autoridade” (nunca o “abuso de autoridade”). A mensagem é simples: cale a boca, fale manso, peça desculpas, agradeça e vá embora. Ali você não é um cidadão: é um estorvo amolando a Otoridade com o seu mimimi. Ali não governa a lei; atrás de cada mesa há um Príncipe, detrás de cada guichê há um Tirano, que te tratará bem ou mal segundo os movimentos do próprio humor ou o singular exercício do seu poder discricionário.
Minha crença é simples: falta à formação das nossas polícias noções básicas da cultura republicana. Além das outras tantas coisas que sempre faltam neste país.