​Carta de Santa Cruz. O nosso grito

Osservatore Romano/ Vaticano – Publicamos a seguir o conteúdo do documento final entregue ao Papa durante o encontro com os movimentos populares

terra labor

Nós, organizações sociais reunidas no segundo encontro mundial dos movimentos populares em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, nos dias 1-9 de Julho de 2015, concordamos com o Papa Francisco sobre a constatação de que as problemáticas social e ambiental sobressaem como os dois lados da mesma moeda. Um sistema que não pode oferecer terra, casa e trabalho a todos, que mina a paz entre as pessoas e ameaça a própria subsistência da mãe terra, não pode continuar a reger o destino do planeta.

Devemos superar um modelo social, político, económico e cultural em que o mercado e o dinheiro se tornaram o eixo regulador das relações humanas a todos os níveis. O nosso grito, o grito de quantos são mais excluídos e marginalizados, obriga os poderosos a compreender que assim não se pode ir em frente. Os pobres do mundo ergueram-se contra a exclusão social que padecem todos os dias. Não queremos explorar, nem ser explorados. Não desejamos excluir, nem ser excluídos. Queremos construir um estilo de vida em que a dignidade sobressaia acima de tudo.

Por isso, comprometemo-nos a:

1. Estimular e aprofundar o processo de mudança

Confirmamos o nosso compromisso nos processos de mudança e de libertação, como resultado da obra dos povos organizados que, a partir da sua memória colectiva, tomam a história nas suas próprias mãos decidindo transformá-la, para dar vida às expectativas e utopias que nos convidam a revolucionar as estruturas mais profundas de opressão, dominação, colonização e exploração.

2. Viver bem, em harmonia com a mãe terra

Continuaremos a lutar para defender e proteger a Mãe Terra, promovendo a «ecologia integral» de que fala o Papa Francisco. Somos fiéis à filosofia ancestral do «viver bem», nova ordem de vida que propõe harmonia e equilíbrio nas relações entre os seres humanos, e entre eles e a natureza.

A terra não nos pertence, somos nós que pertencemos à terra. Devemos cuidar dela e cultivá-la em benefício de todos. Queremos normas ambientais em todos os países, em virtude do cuidado dos bens comuns.

Exigimos a reparação histórica e um quadro jurídico que tutele os direitos dos povos indígenas nos planos nacional e internacional, promovendo um diálogo sincero com a finalidade de superar os vários e múltiplos conflitos que atingem os povos indígenas, nativos, camponeses e afrodescendentes.

3. Defender o trabalho digno

Comprometemo-nos a lutar pela defesa do trabalho como direito humano. Com a criação de fontes de trabalho digno, com a definição e a realização de políticas que devolvam todos os direitos trabalhistas eliminados pelo capitalismo neoliberal, como os sistemas de segurança social e de reforma, e o direito à sindicalização.

Rejeitamos a precarização e a terceirização, enquanto procuramos fazer com que se supere a informalidade através da inclusão e nunca com a perseguição nem com a repressão.

Ao mesmo tempo, defendemos a causa dos migrantes, dos deslocados e dos refugiados. Solicitamos os Governos dos países ricos a ab-rogar todas as normas que promovem um tratamento discriminatório contra eles e a estabelecer formas de regulação que eliminem o trabalho escravo, o contrabando, o tráfico de pessoas e a exploração infantil.

Promoveremos formas alternativas de economia, tanto nas áreas urbanas como rurais. Queremos uma economia popular e social comunitária, que salvaguarde a vida das comunidades e na qual a solidariedade prevaleça sobre o lucro. Para tal finalidade é necessário que os Governos intensifiquem os esforços emergentes das bases sociais.

4. Melhorar os nossos bairros e construir habitações dignas

Denunciamos a especulação e a comercialização dos terrenos e dos bens urbanos. Rejeitamos os despejos forçados, o êxodo rural e o crescimento dos bairros marginais. Rejeitamos todos os tipos de perseguição judiciária contra quantos lutam por uma casa para a sua família, porque consideramos a habitação um direito humano fundamental, que deve ser de cunho universal.

Exigimos políticas públicas participativas que garantam o direito à habitação, a integração urbana dos bairros marginais e o acesso integral ao habitat para edificar casas com segurança e dignidade.

5. Defender a Terra e a soberania alimentar

Promovemos a reforma agrária integral para distribuir a terra de modo justo e equitativo. Chamamos a atenção dos povos para o nascimento de novas formas de acumulação e de especulação da terra e do território como mercadoria, ligadas ao agronegócio, que promove a monocultura destruindo a biodiversidade, consumindo e poluindo a água, deslocando populações camponesas e utilizando agrotóxicos que contaminam os alimentos.

Confirmamos a nossa luta pela eliminação definitiva da fome, a defesa da soberania alimentar e a produção de alimentos sadios. Ao mesmo tempo, rejeitamos com determinação a propriedade particular das sementes por parte de grandes grupos agro-industriais, assim como a introdução dos produtos transgénicos em substituição dos originais, uma vez que destroem a reprodução da vida e a biodiversidade, criam dependência alimentar e causam efeitos irreversíveis para a saúde humana e para o meio ambiente. Do mesmo modo, confirmamos a defesa dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas sobre a agricultura sustentável.

6. Construir a paz e a cultura do encontro

Comprometemo-nos, a partir da vocação pacífica dos nossos povos, a intensificar as obras colectivas que garantem a paz entre todas as pessoas, os povos, as religiões, as etnias e as culturas.

Confirmamos a pluralidade das nossas identidades culturais e as nossas tradições, que devem conviver harmoniosamente sem que umas submetam as outras. Levantamo-nos contra a criminalização da nossa luta, porque continuam a criminalizar os nossos costumes.

Condenamos qualquer tipo de agressão militar e mobilizamo-nos pela cessão imediata de todas as guerras e das acções desestabilizadoras ou dos golpes de Estado, que atentam contra a democracia e a escolha dos povos livres. Rejeitamos o imperialismo e as novas formas de colonialismo, quer sejam militares, quer financeiras ou mediáticas. Pronunciamo-nos contra a impunidade dos poderosos e a favor da liberdade dos lutadores sociais.

7. Combater a discriminação

Comprometemo-nos a lutar contra todas as formas de discriminação entre os seres humanos, baseadas em diferenças étnicas, cor da pele, género, origem, idade, religião ou orientação sexual. Todos nós, mulheres e homens devemos ter os mesmos direitos. Condenamos o machismo, qualquer forma de violência contra a mulher, em particular o feminicídio, e bradamos: Ni una menos! (Sem sequer uma a menos!).

8. Promover a liberdade de expressão

Promovemos o desenvolvimento de meios de comunicação alternativos, populares e comunitários, diante do avanço dos monopólios mediáticos que ocultam a verdade. O acesso à informação e a liberdade de expressão são direitos dos povos e fundamento de qualquer sociedade que quiser ser democrática, livre e soberana.

O protesto é também uma forma legítima de expressão popular. É um direito e nós que o exercemos não devemos ser perseguidos por isto.

9. Pôr a ciência e a tecnologia ao serviço dos povos

Comprometemo-nos a lutar a fim de que a ciência e o conhecimento sejam utilizados ao serviço do bem-estar dos povos. Ciência e conhecimento são conquistas de toda a humanidade e não podem estar ao serviço do lucro, da exploração, da manipulação ou da acumulação de riquezas por parte de alguns grupos. Fazemos com que as universidades se encham de pessoas do povo e os seus conhecimentos se destinem a resolver os problemas estruturais, mais do que a gerar riquezas para as grandes corporações; a denunciar e a controlar as multinacionais farmacêuticas que, por um lado, lucram com a expropriação dos conhecimentos milenários dos povos nativos e, por outro, especulam e geram lucros com a saúde de milhões de pessoas, antepondo os negócios à vida.

10. Rejeitamos o consumismo e defendemos a solidariedade como programa de vida.

Defendemos a solidariedade como projecto de vida pessoal e colectivo. Comprometemo-nos a lutar contra o individualismo, a ambição, a inveja e a avidez, que se escondem nas nossas sociedades e muitas vezes em nós mesmos. Trabalharemos incansavelmente para erradicar o consumismo e a cultura do descarte.

Continuaremos a trabalhar para construir pontes entre os povos, que nos permitam abater os muros da exclusão e da exploração!

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Papa prega a Teologia da Pobreza: «quando a fé não chega aos bolsos, não é uma fé genuína»

Riqueza e pobreza

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Foi a «teologia da pobreza» o nó central da homilia do Papa Francisco na missa celebrada na terça-feira, 16 de Junho, em Santa Marta. A reflexão do Pontífice partiu do trecho da segunda carta aos Coríntios (8, 1-9), no qual são Paulo «está a organizar na Igreja de Corinto uma colecta para a Igreja de Jerusalém, que vive momentos difíceis de pobreza». Para evitar que a colecta se verificasse de forma errada, o apóstolo «faz algumas considerações», uma espécie de «teologia da pobreza».

Especificações necessárias porque, explicou Francisco, «pobreza» é uma palavra «que causa sempre perplexidade». Com efeito, quantas vezes ouvimos dizer: «Mas este sacerdote fala demasiado sobre a pobreza, este bispo fala de pobreza, este cristão, esta religiosa falam de pobreza… Mas são um pouco comunistas, não é?». E, ao contrário, sublinhou o Papa, «a pobreza está precisamente no centro do Evangelho», a ponto que «se nós tirássemos a pobreza do Evangelho, nada se entenderia da mensagem de Jesus».

Eis então explicada a catequese de Paulo «sobre a esmola, a pobreza e as riquezas» que começa com um exemplo tirado da experiência da Igreja da Macedónia. Ali, «na grande prova da tribulação – porque sofriam tanto devido às perseguições – na pobreza extrema, a sua alegria superabundou e superabundaram na riqueza da sua generosidade». Ou seja, «ao dar, ao suportar as tribulações enriqueceram-se, tornaram-se jubilosos. É, acrescentou Francisco, o que se encontra numa das Bem-aventuranças: «Bem aventurados sois vós quando vos insultarem, e perseguirem…».

Depois de ter feito este exemplo, Paulo dirige-se de novo para a Igreja de Corinto: «E dado que vós sois ricos, pensai neles, na Igreja de Jerusalém». Mas, perguntou o Papa, de qual riqueza fala Paulo? A resposta lê-se imediatamente depois: «Sois ricos em todas as coisas: na fé, na palavra, no conhecimento, em cada zelo e na caridade que vos ensinamos». Segue-se uma exortação: «Assim, dado que sois ricos, abundai também nesta obra de generosidade». Ou seja, fazei com que, explicou Francisco, esta riqueza tão grande – o zelo, a caridade, a palavra de Deus, o conhecimento de Deus – chegue aos bolsos». Porque, acrescentou, «quando a fé não chega aos bolsos, não é uma fé genuína»; e esta é «uma regra de ouro» que deve ser recordada.

Do trecho paulino sobressai, portanto, uma «contraposição entre a riqueza e a pobreza. A Igreja de Jerusalém é pobre, está em dificuldade económica, mas é rica, porque tem o tesouro do anúncio evangélico». E foi precisamente «esta Igreja de Jerusalém, pobre», que enriqueceu a Igreja de Corinto «com o anúncio evangélico: deu-lhe a riqueza do Evangelho». Quem era rico economicamente, na realidade, era pobre «sem o anúncio do Evangelho». Há, disse o Pontífice, «um intercâmbio recíproco» e assim «da pobreza vem a riqueza».

É neste ponto, explicou o Papa, que «Paulo com o seu pensamento, chega ao fundamento daquilo a que podemos chamar “teologia da pobreza”, porque a pobreza está no centro do Evangelho». Lê-se na epístola: «De facto, conheceis a graça do nosso Senhor Jesus Cristo: era rico e fez-se pobre por nós, a fim de que vos torneis ricos por meio da sua pobreza». Portanto, «foi precisamente o Verbo de Deus que se fez carne, o Verbo de Deus nesta condescendência, neste abaixamento, neste empobrecimento, que nos tornou ricos nos dons da salvação, da palavra, da graça». Este «é o centro da teologia da pobreza» que, de resto, se encontra na primeira bem-aventurança: «Felizes os pobres de espírito». Francisco explicou: «Ser pobre é deixar-se enriquecer pela pobreza de Cristo e não querer ser rico com outras riquezas excepto as de Cristo, é fazer o que Cristo fez». Não é só fazer-se pobre, mas é «dar mais um passo», porque, disse, «o pobre me enriquece».

Citando um exemplo concreto do dia-a-dia, o Papa explicou que «quando oferecemos uma ajuda aos pobres, não fazemos de modo cristão obras de beneficência». Estamos diante de um acto «bom», «humano», mas «não é a pobreza cristã que Paulo menciona e prega». Porque pobreza cristã significa «que eu ofereço ao pobre do que é meu e não do que é supérfluo, também do necessário, porque sei que ele me enriquece». E por que me enriquece o pobre? «Porque Jesus disse que ele próprio está no pobre».

O mesmo conceito é afirmado por Paulo quando escreve: «Nosso Senhor Jesus Cristo de rico que era fez-se pobre por vós, para que vós vos tornásseis ricos por meio da sua pobreza». Isto acontece «cada vez que me despojo de algo, mas não só do supérfluo, para dar a um pobre, a uma comunidade pobre, a tantas pessoas pobres às quais falta tudo», porque «o pobre me enriquece» enquanto «é Jesus quem age nele».

Eis porque, concluiu o Papa, a pobreza «não é uma ideologia». A pobreza «está no centro do Evangelho». Na «teologia da pobreza» encontramos «o mistério de Cristo que se abaixou, se humilhou e se empobreceu para nos enriquecer». Assim, compreende-se «porque a primeira das bem-aventuranças é: “Bem-aventurados os pobres de espírito”». E «ser pobre de espírito – frisou o Pontífice – é ir por este caminho do Senhor», o qual «se abaixou» a ponto de se fazer «pão por nós» no sacrifício eucarístico. Isto é, Jesus «continua a abaixar-se na história da Igreja, no memorial da sua paixão, no memorial da sua humilhação, no memorial do seu abaixamento, no memorial da sua pobreza, e enriquece-nos com este “pão”».

Eis a sugestão final para a oração: «Que o Senhor nos faça entender o caminho da pobreza cristã e a atitude que devemos assumir quando ajudamos os pobres». In Osservatore Romano/ Vaticano

Tico Santa Cruz
Tico Santa Cruz