por Daniel Cassol
Assunção, 1º de Maio de 2009. As manifestações do Dia Internacional do Trabalho terminam em frente a uma clínica privada, que abriga desde a madrugada Augusto Montanaro, ministro do Interior e responsável pelas torturas e desaparições durante a ditadura de Alfredo Stroessner, recém chegado de Honduras, onde estava foragido. Há confronto com a tropa de choque da Polícia Nacional. Sobram, para este repórter que fotografava o ato, alguns chutes de um policial, mesmo anunciando aos gritos ser jornalista. Quando a situação se acalma, um dos manifestantes picha um muro da clínica:“sanatório stronista”.
Qualificar uma clínica privada como “stronista” não é apenas um arroubo exagerado de um manifestante, mas um exemplo de como a ditadura de 35 anos deixou mais do que cicatrizes na sociedade paraguaia. O stronismo está vivo e impregnado em instituições como o Poder Judiciário e a Polícia, controladas durante seis décadas pelo Partido Colorado, herdeiro de uma de suas principais tradições: o desprezo pela democracia.
Foi dentro do Partido Colorado que, em 1999, se gestou uma tentativa de golpe de Estado, no episódio que ficou conhecido como Marzo Paraguayo, a crise gerada pelo assassinato do vice-presidente Luis Maria Argañas e pelas evidências de que, por trás de tudo, estava o general Lino Oviedo, que três anos antes havia tentado um golpe pela primeira vez. Libertado da prisão pelo presidente Raúl Cubas Grau, seu afilhado político, Oviedo estaria tramando para chegar à presidência. Os paraguaios foram às ruas para evitar o retorno da ditadura militar. Sete jovens morreram nos protestos, provavelmente alvos de atiradores de elite que se posicionaram em edifícios do centro de Assunção – da mesma forma que aconteceu na noite da última sexta-feira. Cubas acabaria renunciando à presidência. Oviedo, atualmente, é líder do UNACE, partido de direita que ajudou a impulsionar o “juício político” contra Lugo.

Alguns veículos do Paraguai falam em 24 vezes em que os colorados ou outros parlamentares de direita tentaram aprovar o pedido de “juício politico” contra o presidente Lugo. Não sei dizer se foram tantas, mas nos seis meses em que morei em Assunção, em 2009, lembro de duas. Os motivos eram absolutamente prosaicos. Quando surgiu a informação de que Lugo tinha um filho não reconhecido, uma senadora ingressou com um pedido de impeachment no Congresso. Em seguida, a realização de um encontro de jovens ligados a movimentos sociais em um quartel do Exército gerou uma nova tentativa. Era de conhecimento de todos, inclusive da embaixada dos Estados Unidos em Assunção, que desde 2009 se tramava um golpe contra Lugo, como mostram correspondências diplomáticas publicadas pelo Wikileaks.

Na mesma época, o presidente Manuel Zelaya era destituído em Honduras, levando os partidos de esquerda e movimentos paraguaios a protestarem contra a ameaça à democracia no continente. Falava-se na época sobre os riscos de se reproduzir no Paraguai a mesma experiência hondurenha.
É preciso dizer, no entanto, que mesmo reformas simples foram barradas pelo Congresso, hegemonizado pelo Partido Colorado. Acostumada nos privilégios, a elite paraguaia jamais tolerou sequer a mais básica política de cunho social. Atrasada e truculenta, usava o medo do chavismo como justificativa para a histeria – com apoio de um considerável setor da imprensa, liderado pelo reacionário, controverso e mirabolante jornal ABC Color.
Lugo não conseguiu criar um imposto sobre a renda pessoal, cuja inexistência perpetua a desigualdade e os privilégios das elites locais. Na questão agrária, qualquer menção à recuperação das chamadas “terras mal havidas”, distribuídas ilegalmente a grandes proprietários durante a ditadura Stroessner, gerava uma nova onda de desestabilização, que tinha nos grandes produtores de soja um dos principais incentivadores.
Los sojeros, entre eles muitos brasileiros, detêm o poder econômico e político no Paraguai.
Dotado de grande poder, este setor, apoiados pelas multinacionais de sementes e defensivos químicos, sempre pressionou, por exemplo, pela flexibilização das leis ambientais e pela liberação de cultivares transgênicos e de agrotóxicos pesados. Sempre teve a Polícia Nacional e o Exército paraguaio sob seu comando. A concentração de terras e a pobreza no campo são grandes fatores de tensão, mas para os grandes produtores era Lugo quem estava incitando os movimentos camponeses.

Estopim para o golpe
Uma tragédia decorrente de uma disputa por terras supostamente mal havidas em Curuguaty, próximo da fronteira com o Brasil, em uma propriedade de Blas Riquelme, ex-presidente do Partido Colorado, foi o estopim para o impeachment de Lugo. Há uma grande suspeita de armação na incitação à violência, que terminou com a morte de 11 camponeses e seis policiais. Não é possível afirmar nada, a não ser que a tensão no campo foi explorada pelos setores que desde o começo do governo Lugo tentaram abreviá-lo. E que da União de Grêmios Produtores (UGP), a confederação dos sindicatos de produtores rurais do Paraguai, partiu a palavra de ordem pelo “juício político”.
O principal articulador da estratégia oposicionista foi Horácio Cartes, líder de um movimento interno do Partido Colorado, pré-candidato às eleições presidenciais no ano que vem e apontado, pelos Estados Unidos, como tendo ligações com o narcotráfico, segundo revelou o Wikileaks.
O impeachment foi aprovado e sacramentado com rapidez impressionante. Da noite para o dia, a elite paraguaia conseguia levar a cabo o que sempre foi uma obsessão. Fica claro, portanto, que o massacre em Curuguaty foi o pretexto que faltava para que a direita paraguaia recuperasse as rédeas da administração pública – na marra, como é de seu costume.
Desconsiderar esse contexto é ignorar a gravidade do que aconteceu no Paraguai.
(Transcrevi trechos) Leia mais
