A Igreja Católica, em 1964, promoveu procissões de pregação do golpe militar, com a TFP – Tradição, Família e Propriedade, e o slogan hoje usado, pela direita, na Bolívia e na Venezuela: “a família que reza unida permanece unida”.
Com o aparecimento da Teologia da Libertação, os militares decidiram exportar, dos Estados Unidos, as igrejas pentecostais, que no Brasil atuam na política, elegendo pastores conservadores, para combater o casamento igualitário e libertário (o chamado casamento gay), e religiões nativas, notadamente de origem africana e indígena.
Essa nova onda de guerra religiosa recrudece quando a Igreja Católica, Apostólica e Romana sai das trevas da Santa Inquisição.
Francisco abre a Igreja às novas formas de família

por Pablo Ordaz/ El País/ Espanha
á há um membro do alto clero preso por lavagem de dinheiro e um arcebispo em prisão domiciliar por abuso de menores. O papa Francisco não foi a Milão, Londres ou Madri, mas à Coreia, à Albânia e à ilha de Lampedusa, lugares aonde o vento nunca soprou a favor nem do catolicismo e nem da própria vida. A agenda que Jorge Mario Bergoglio marcou quando, segundo suas próprias palavras, chegou ao Vaticano “do fim do mundo” está sendo cumprida. Um plano de transparência para o dinheiro do IOR (Instituto para as Obras de Religião), tolerância zero com os pedófilos e viagens constantes para a periferia do mundo. A etapa seguinte, que começa neste domingo com o Sínodo sobre a Família, é talvez a mais difícil, porque consiste em abrir as portas da Igreja aos que foram se afastando pelos azares da vida – divorciados que voltaram a se casar – ou aos que sempre as encontraram fechadas – união estável, novas famílias que surgem de relações quebradas, filhos adotados por casais do mesmo sexo. E é precisamente nessa distância curta entre o dogma e a tradição onde joga um papa como Francisco.
Não à toa, este está sendo o momento em que os setores mais retrógrados da Igreja – aqueles que sempre viram Francisco com desconfiança, mas não falaram nada por medo de serem afastados pelo líder – estão saindo à luz. O exemplo mais claro é o livro que o cardeal alemão Gerhard Müller, o poderoso prefeito para a Congregação para a Doutrina da Fé, e outros quatro cardeais – um norte-americano, outro alemão e dois italianos – publicaram junto ao Sínodo da Família. Nele, se opõem frontalmente ao retorno aos sacramentos de divorciados que voltaram a se casar, ou a que, em determinados casos de fracasso matrimonial, o procedimento de anulação seja acelerado e simplificado. “Está em jogo a lei divina”, afirmam os autores do livro, “porque a indissolubilidade do matrimônio é uma lei proclamada diretamente por Jesus e confirmada muitas vezes pela Igreja. O matrimônio só pode ser dissolvido pela morte”.
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Os mais críticos com as reformas do Papa alegam que “a lei divina está em jogo”
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Müller, atual chefe do antigo Santo Oficio, mesmo cargo que Joseph Ratzinger exerceu até substituir João Paulo II, diverge nada mais e nada menos que do próprio Jorge Mario Bergoglio, do cardeal de sua confiança Walter Kasper – “todo pecado pode ser perdoado, o divórcio também” – e do cardeal Lorenzo Baldisseri, que será justamente o secretário do Sínodo da Família. Baldisseri, como bom italiano, prefere mediar as partes antes que o sangue chegue ao rio, mas nem por isso esconde sua opinião ou a do Papa: “As coisas não são estáticas. Caminhamos através da história, e a religião cristã é histórica, e não ideológica. O contexto atual da família é diferente de 30 anos atrás, dos tempos em que se publicou a Familiaris Consortio (a Exortação Apostólica de João Paulo II). Se negarmos isso, ficaremos presos há 2.000 anos. O Papa quer abrir a Igreja. Há uma porta que até agora esteve fechada, e Francisco quer abri-la”.
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O cardeal Baldisseri replica aos conservadores que “as coisas não são estáticas” e Bergoglio quer abrir uma porta que estava fechada
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Mais claro que isso apenas a água. Tão claro que, como se um sino tivesse sido tocado, os guardiões da tradição estão acordando. A última aparição foi do cardeal esloveno Franco Rodé, antigo prefeito da Congregação para os Institutos da Vida Consagrada, que falou de Bergoglio sem meias palavras: “Sem dúvida, o Papa é um gênio da comunicação. Parece simpático, e isso conta a seu favor. Mas suas opiniões sobre o capitalismo e a justiça social são excessivamente de esquerda. Claramente está marcado pelo ambiente do qual vem. Na América do Sul, há grandes diferenças sociais e cada dia se produzem grandes debates sobre essa questão por lá. Mas essa gente fala muito e resolve pouco”. Não se trata apenas do desabafo isolado de um cardeal que vê, aos 80 anos, aquilo que decorou estar sendo mudado, mas um pensamento que reflete o sentimento contrário às reformas de um setor que, ainda que minoritário, continua existindo dentro do Vaticano e permanece alerta, atento. Tanto que aquelas conspirações que marcaram os últimos dias do pontificado de Bento XVI estão voltando a surgir: relatórios secretos, vazamentos, acusações com mais ou menos fundamentos que tentam desqualificar os mais próximos colaboradores de Francisco, inclusive o cardeal australiano George Pell, atual prefeito da Secretaria de Economia da Santa Sé. Resta saber se são os últimos suspiros de uma época terrível para o Vaticano – o caso do Vatileaks, que foi fechado, talvez em falso, e a detenção do mordomo de Ratzinger – ou o princípio das hostilidades contra Bergoglio.
Um muçulmano no Sínodo Católico
Não é um processo rápido ou propenso às grandes manchetes. O Sínodo da Família, cujo título é “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”, que será desenvolvido até o próximo dia 19, contará com 253 participantes, dos quais 191 serão “padres sinodais”, e o resto se dividirá entre especialistas laicos e – pela primeira vez em um Sínodo – 14 famílias do Líbano, Congo, Ruanda, Filipinas e diversos países da Europa. Entre eles, está um casal formado por uma católica e um muçulmano. Os bispos, que já enviaram ao Vaticano o conteúdo dos seus discursos para eles serem ordenados por grupos temáticos, têm quatro minutos para defender suas propostas. O debate servirá para elaborar um documento que será enviado às Conferências Episcopais de todo o mundo. Portanto, como avisou o cardeal Lorenzo Baldisseri, o Sínodo “não tomará decisões” e suas conclusões serviram apenas “de base para a segunda assembleia, que se celebrará em 2015”. Será, portanto, no ano que vem que se anunciará a nova postura da Igreja para as famílias, se houver uma.
O interesse no momento não são tanto as respostas – que demoraram para chegar –, mas até que ponto a Igreja está disposta a se questionar e se alterar ou se continuará cômoda e presa a uma tradição que afasta os fiéis. Na véspera do Sínodo, e aproveitando sua conta no Twitter, @pontifex, o papa Francisco lançou uma mensagem que, mesmo óbvia, parece um desafio aos que, presos à tradição ou aos dogmas, continuam acreditando na teoria do vale das lágrimas. “A Igreja e a sociedade”, disse o Papa”, precisam de famílias felizes”.